OPINIÃO

Eles de lá e eu daqui

17/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Eu fico pensando na expressão cair a ficha. Acho que qualquer um que nasceu dos anos 2000 pra frente nem sabe mais do que se trata.

Já eu cativo da década de noventa, bem me lembro de ir todo fim de tarde até o orelhão com meu pai para ligar para minha avó ou algum outro parente distante. Mas era mais pra sua mãe que ele ligava mesmo. As fichas eram escassas, não dava pra ficar de papo como hoje em tempos de WhatsApp.

Meu pai era direto, não podia perder tempo. Já ia querendo saber como ela estava, se tinha alimentado o porco que estávamos engordando para o Natal.

O barulho da ficha caindo fazia iniciar em nossa mente uma corrida contra o relógio. Falar todas as informações necessárias antes do tempo acabar. Usar uma segunda ficha era só pra situações importantes, ou o papo do dia seguinte ficaria comprometido. Assuntos mais longos deixávamos para o almoço de domingo, onde, aí sim, poderíamos saber de tudo com detalhes.

Ali, os Ribeiro reunidos à mesa. E assim, essa corrida contra o tempo era quase uma gincana do "passa ou repassa". Por sorte sem torta na cara.

Meu pai subia a rua repassando comigo tudo que precisava falar com a vó: alimentar o porco, avisar o tio Brasilino para passar lá em casa no sábado e perguntar a ela se as dores na barriga haviam melhorado.

Ela garantia que estava alimentando bem o porco e que não esqueceria de dar o recado ao meu tio. Sobre a dor, ela falava que não era nada. Mas infelizmente era, e alguns meses depois perdemos minha avó e assim no Natal daquele ano a mesa tinha uma cadeira vazia. Alguém que não comeria do porco que engordamos.

Meu pai tentava parecer forte, mas eu me lembro de ver seus olhos úmidos sempre que íamos até aquela casa que por vezes abrigou os almoços de domingo e que agora era a lembrança de um tempo passado.

"Tá tudo bem pai?", eu perguntei.

"Está sim meu filho, mas é que a ficha ainda não caiu."

Ouvi a resposta de meu pai e com apenas sete anos não entendi.

"Será se ele vai ligar pra vó lá no céu?" "Tem orelhão pra isso?" Pensei e me calei. Tudo que meu velho precisava naquele momento era um abraço. Eu dei, e ainda veio acompanhado de um sorriso. O entendimento só veio tempos depois, junto com a maturidade.

Os ensinamentos da vó faziam falta, o sorriso e o frango com macarrão aos domingos também.

Os anos passaram e nesse fim de ano foi meu pai quem decidiu falar com minha avó. Mas sem orelhão, olho no olho no andar de cima. Por coincidência ou não, no dia do aniversário dela. Acho que a saudade era demais, ele queria abraçar ela pessoalmente. Fico feliz por ele. Mas agora a ficha que não caiu foi a minha. Aquela casa sem sua voz grave e sua risada alta ficou grande, vazia. Falta algo.

Falta ele!

Não sei se a minha ficha vai cair um dia. Muitas lágrimas já caíram e acho que outras tantas ainda serão derramadas. As caminhadas até a rua de cima agora não têm mais a companhia do senhor grisalho repassando as falas que caberiam em uma ficha. Não tem orelhão, não tem ligação. Só tem saudade e esperança.

Um dia seremos nós três. Eu, meu pai e minha avó. Mas até lá seguimos separados.

Eles de lá e eu daqui.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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