Na última semana, a Câmara Legislativa de São Paulo chocou muita gente ao anunciar que abriria uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar ONGs que atuam na região da "cracolândia", na capital paulista, tendo como principal alvo o padre Julio Lancellotti, responsável por inúmeras ações de caridade para moradores de rua e dependentes químicos da maior cidade do país.
Quem protocolou o pedido da CPI foi Rubinho Nunes (União) que ganhou fama sendo um dos fundadores do MBL (Movimento Brasil Livre). O vereador acusa as ações de entidades filantrópicas que atuam na "cracolândia" de se beneficiarem com as condições dos dependentes químicos em situação de rua, insinuando que há na região uma "máfia da miséria". Uma das instituições alvo das investigações seria o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar), no qual Julio Lancellotti foi conselheiro no passado.
As perseguições do parlamentar contra o padre não são algo recente. Em agosto do ano passado, propôs um projeto de lei que restringisse as doações de alimentos aos moradores de rua. Em suas redes sociais, escreveu que "distribuição irrestrita de alimentos para moradores de rua incentiva as pessoas a continuarem vivendo em meio ao lixo". Essa fala ataca diretamente o trabalho do padre Julio Lancellotti, que há mais de 40 anos milita pelos pobres, e que é coordenador da Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de São Paulo.
Quando a CPI foi anunciada, milhares de manifestações a favor de Lancellotti e de repúdio a Nunes circularam nas redes. Até mesmo a Arquidiocese de São Paulo se manifestou em apoio a seu vigário, dizendo que vê com perplexidade a instauração do inquérito parlamentar. Sem contar os famosos e anônimos que lotaram o X (Twitter) de mensagens revoltadas contra o vereador. Dito isso, proponho pensarmos na criação dessa CPI por dois caminhos: a necessidade e o resultado.
Em 2024 teremos eleições municipais. CPI em ano de eleição se torna palanque político e Rubinho Nunes sabe disso. Por não fazer mais parte do MBL, Nunes entende que sua garantia de reeleição é colar no bolsonarismo, que mesmo capenga, ainda é numeroso. Quando ele ataca o padre Julio Lancellotti, ele alimenta a sanha da extrema direita que tem horror à justiça social. Essa CPI colocaria Rubinho Nunes em evidência entre os eleitores resistentes de Bolsonaro. Vale lembrar que ele deixou o MBL em 2022, depois de anunciar apoio a Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno das eleições, contrariando a decisão do movimento que defendeu o voto nulo.
O peso político dessa CPI é tão grande que a repercussão negativa fez com que alguns parlamentares que votaram a favor da sua criação pulassem fora. Foi o caso de Thammy Miranda (PL), que disse ter sido enganado e que a comissão foi apresentada escondendo o fato de que Julio Lancellotti - quem defendeu o vereador do PL após caso de homofobia - seria um dos investigados. Mas não para por aí. Nunes comprou uma briga com a Igreja Católica no qual outros candidatos a reeleição não querem participar, uma vez que dependem muito dos votos oriundos do catolicismo.
O fato é que a CPI já foi protocolada e irá para o colégio de líderes da Câmara, que deve decidir se a proposta vai ou não a plenário, onde precisa da maioria dos 55 vereadores para ser aprovada. O que eu, particularmente, duvido que aconteça.
Mas, sendo bem sincero, por mais nefasta que seja, eu gostaria que acontecesse. Eu adoraria ver o padre Julio Lancellotti estampado em todos os canais de televisão, sites e em discussões nas redes sociais. Essa investigação resultaria num grande holofote no trabalho dele. Se em poucos dias a ameaça da CPI já colocou Julio Lancellotti como a personalidade mais falada da internet brasileira, imagina ver ele na Câmara dando depoimento? A indignação ia rodar o Brasil e quem sabe o mundo e o religioso e sua obra ganhariam mais notoriedade e força. Sem contar que não provariam nada contra ele e os acusadores até poderiam se reeleger, mas deixariam exposta (mais ainda) a extrema direita e o que ela defende e persegue.
Acredito até que isso poderia levar Julio Lancellotti ao Nobel da Paz e olha que os primeiros movimentos para isso já foram dados pelo ex-ouvidor das polícias de São Paulo e atual Secretário de Segurança Pública de Diadema, Benedito Mariano, que quer iniciar uma campanha junto ao Ministério dos Direitos Humanos para indicar o padre ao prêmio.
Essa perseguição a um padre que se dedica inteiramente a alimentar os pobres só me mostra uma coisa: se Jesus voltasse, seria crucificado outra vez, só que bem mais rápido e com muito mais crueldade. E enquanto o padre que distribui pães para moradores de rua é investigado como beneficiário da miséria, alguns pastores famosos que colaram no bolsonarismo estão passando férias em suas mansões mundo à fora.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)