OPINIÃO

Somos todos masoquistas?

04/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Teve uma época na minha infância que os tempos ficaram perigosos. Toda semana aparecia alguém com o braço ou a perna engessada. As aventuras iam desde cair do guarda-roupas, do esconde-esconde, andar de skate ou qualquer uma das diversas brincadeiras de rua clássica dos anos noventa. Pelo menos era assim no interior de Minas.

E eu que nunca fraturei um membro invejava meus amigos aventureiros que além de boas histórias pra contar ainda tinham a popularidade de todos assinarem nos seus gessos.

Eu admito que tentei algumas vezes ter um gesso pra chamar de meu. Desci ladeiras de rolimã, apostava com meus primos quem saltava mais longe na casa abandonada na rua de cima e até andei de bicicleta sem as mãos. Mas nada! Meu santo era forte. Meu anjo da guarda fazia hora extra. E assim venci a adolescência sem um braço imobilizado e assinado.

O tempo passou, obviamente opiniões mudaram.

Agora já adulto acho essa história divertida e engraçada. Pois hoje teria horror a quebrar um membro, ter simples atividades do cotidiano limitadas por conta de uma fratura. Imagina a dificuldade que seria caminhar até a poltrona da sala pra ler? Trocar de páginas com um braço imobilizado? Não mesmo! Esse masoquismo ficou no passado.

Falando em leitura, estou lendo o livro "Tudo sobre o Amor". Da Bell Hooks. Até comentei dessa leitura em outra crônica. Ando falando muito desse livro pelo impacto que ele me causou. É um tapa na cara atrás do outro. E ainda assim eu não largo a leitura, cada dia mais preso. Acho que são as tendências masoquistas da infância voltando de outra forma. Só pode.

Ou talvez, como diz aquela música do Teatro Mágico. O tudo é uma coisa só. Talvez ler sobre amor e a desconstrução do conceito desse sentimento seja o que preciso ouvir. Entender mais sobre mim. Entender que aquele adolescente que queria que todos assinassem seu gesso só queria carinho, atenção. Perceber que estar disposto a suportar a dor de uma queda, acompanhada de fratura óssea só pra ter a atenção de todos no recreio fala muito mais sobre o amor do que sobre a dor.

E assim esses dois pensadores. A Bell Hooks e o Fernando Aniteli me mostram uma realidade que de tão na cara, acabou passando despercebida.

O cantor do Teatro Mágico fala assim:

"O nó que eu desamarro surge pra me dar um nó

Você aparece de repente e coloca em minha frente a dúvida maior

Se tudo que eu preciso se parece

Por que é que não se junta tudo numa coisa só?"

Já a escritora e professora Bell completa sobre o que é o amor:

"A vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa". O espiritual aqui como a "dimensão de nossa realidade mais íntima em que a mente, o corpo e o espírito são um só".

No fim das contas dois que nem se conhecem descreveram parte da minha vida. Onde tentava juntar tudo na infância em busca de carinho e atenção e agora um tiquinho maior quero entender alguns porquês pra poder seguir em paz.

Doido isso né?

Por fim aprendi que não sou masoquista. Bem... eu acho que não. Creio que é mais o fato de que a gente aprendeu que amor é algo que sempre vem atrelado a algo mais, nunca puro.

Espero ter aprendido dessa vez, pois de masoquismo já basta os tapas que tomo da vida.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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