OPINIÃO

Nota falsa

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Como assistir a "Os Delinquentes" e não pensar no atual cenário político e econômico da Argentina? É bom que se diga, antes de qualquer avanço com as opiniões, que o roteiro e todo o projeto do filme foram concebidos muito antes do anarcocapitalista Javier Milei aparecer como concorrente com chances reais à presidência do país vizinho.

Ao centro de "Os Delinquentes" estão dois homens cansados do chamado "sistema". Ambos são bancários, trabalham na mesma empresa. Um deles, certo dia, resolve mudar tudo e toma uma atitude impensável: furta uma grande quantidade de dólares do cofre da instituição na qual trabalha. No mesmo dia, fora do horário do expediente, encontra-se com o amigo e faz sua revelação. E mais: convida o outro para ser parte no crime. A ideia é a seguinte: ele cumprirá três anos e meio de cadeia e o dinheiro ficará escondido com o comparsa. Quando for libertado, ambos deverão se encontrar e dividir a bolada.

O argumento do novo ladrão é curioso: melhor ficar três anos preso em uma cela do que 25 em um banco (o tempo para se aposentar) contando notas. Sob sua ótica, o crime compensa. O amigo, ao ouví-lo, fica contrariado - mas não tem argumentos suficientes para rebate-lo. Ao fundo, um país frio, amargo, com pessoas de classe média sem perspectivas para o futuro e que bem sabem de seus destinos em tal contexto social.

Os homens que ocupam o centro desse grande filme tornam-se cúmplices. O cineasta Rodrigo Moreno está menos interessado em um filme policial - o que seu trabalho até insinua ser, sobretudo na primeira parte - do que em uma história sobre pessoas desesperadas para encontrar a fuga. O dinheiro é apenas o estopim para a vontade de mudar, ao passo que o crime revela-se a maneira mais rápida a garantir aos homens a boa aposentadoria.

Banco e presídio estão emparelhados: são ambientes que, cada um à sua maneira, servem para aprisionar. Um mesmo ator, Germán De Silva, interpreta o gerente do banco e o líder de uma gangue enclausurada. À frente, uma das personagens centrais vai ao cinema. O filme em cartaz é "O Dinheiro", obra-prima de Robert Bresson, de 1983, sobre as consequências de um crime: o uso de uma nota falsa por dois adolescentes de classe média alta.

Ao recorrer a Bresson, Moreno manda um poderoso recado: seu filme também é sobre as consequências de um sistema alimentado por algo que não tem mais qualquer valor. Não por acaso, o dinheiro furtado do banco é o dólar. O peso argentino - e tudo o que ele representa em um mercado com inflação galopante - é uma nota falsa.

Como todo grande filme que reflete seu tempo, "Os Delinquentes" capta à perfeição esse sentimento de desespero que leva alguém a compreender que, dado o contexto, só uma medida radical funciona. Não foi com promessas de dolarizar a economia, de acabar com o Banco Central e de retirar a "casta" do poder que Milei projetou-se como solução a muitos eleitores argentinos? Tempos de economia em cacos são frutíferos para o surgimento de extremistas com a fórmula mágica para tornar um país "grande de novo".

Para seus homens desesperados, Moreno ainda oferece uma saída. E esta não passa só pelo dinheiro. Em momentos diferentes, eles caem na estrada e terminam em ambiente rural, ao lado de uma bela mulher (a mesma). Ali, respiram o ar puro que Buenos Aires não pode mais oferecer, distantes e livres das prisões nas quais viviam.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br

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