OPINIÃO

Justiceiro no Rio de Janeiro

12/12/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Eu fui poucas vezes ao Rio de Janeiro. O motivo é que eu sempre tive medo do estado fluminense. Medo da violência que transbordava nos noticiários. E de fato, o Rio é bastante violento. Segundo dados do Estado do Rio de Janeiro, nos primeiros sete meses de 2023, foram registradas 1.941 mortes - número 8,92% maior que os 1.782 registrados em 2022 no mesmo período.

As duas vezes que estive lá, fiquei na capital. E seguindo conselhos de viajantes mais experientes, fiquei na Zona Sul, mais precisamente em Ipanema. Minha ideia original era ficar na famosa Copacabana, mas rapidamente tiraram isso da minha cabeça. "Lá é muito perigoso", disseram. "Como assim é perigoso?", indaguei. Afinal de contas, Copacabana, Ipanema e Leblon não são a santíssima trindade carioca das novelas de Manoel Carlos? Paraísos dentro do paraíso?

Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública, o bairro de Copacabana teve alta de roubos (25%) e furtos (23%), na comparação entre 2022 e 2023. Se em 2022 foram registrados 3.978 furtos no bairro, o ano atual contou com 4.914 ocorrências. Já em relação ao total de roubos, o número passou de 760 para 951 casos.

A sensação de impotência gera revolta. E a revolta gera mais violência.

Um grupo de moradores de Copacabana resolveu se organizar para fazer justiça com as próprias mãos, auto denominando-se "Justiceiros". Funciona assim: em bando, homens armados com soco-inglês, bastões e qualquer coisa que possa virar uma arma, saem às ruas do bairro "caçando" suspeitos e ladrões que, se pegos, são recebidos com uma verdadeira surra a céu aberto.

Longe de mim tentar defender esse tipo de prática que "funciona" só nos quadrinhos e nos filmes. Mas quero tentar ao menos explicar o porquê isso acontece, já que a filosofia propõe uma resposta pra isso.

Antes, uma história para dar contexto. Nas eleições de 1992 para prefeitura do Rio, dois candidatos deram soluções diferentes para conter a violência. Benedita da Silva (PT) propunha que a violência era gerada pela desigualdade social e que era preciso um trabalho de prevenção. Já César Maia (PMDB) apostou num discurso mais à direita e prometeu repressão total. Mesmo sendo soluções antagônicas, as duas tinham algo em comum: a presença do Estado.

Thomas Hobbes, filósofo inglês da virada do século XVI para o XVII, propôs entender a sociedade por meio da ideia de contratualismo, ou seja, para a sociedade se manter, ela precisa estabelecer um contrato social, no qual as partes envolvidas cumpram o seu papel e mantenham as relações em harmonia.

Hobbes entendia que o ser humano vive em um estado de natureza onde tudo se baseia na "lei do mais forte". Nessas condições, as pessoas sempre estarão em perigo pois sempre haverá alguém mais forte que irá subjugar alguém mais fraco. Sendo assim, viver no estado de natureza é viver em plena guerra. Para viver em paz, é preciso a presença de algum mecanismo que garanta que nenhuma pessoa irá subjugar outra. É aí que Hobbes apresenta o Estado, chamado por ele de Leviatã.

O contrato é o seguinte: as pessoas prometem que não irão subjugar outras pessoas e vão abandonar a lei do mais forte e o estado de natureza. Em troca disso, o Estado garante que ninguém irá ser subjugado por outra pessoa e que todos agora farão parte de um estado social. Em outras palavras, o Estado garante a segurança das pessoas e as pessoas garantem que não serão violentas.

No caso de Capacabana - e de tantos outros lugares -, o Estado não está cumprindo o seu papel no contrato, ou seja, não está garantindo segurança. As pessoas que se denominam "justiceiras" decidiram que, por causa dessa quebra de contrato, não iam cumprir mais a sua parte também e passariam a agir com violência, baseados na lei do mais forte. O resultado disso é a barbárie.

O grande problema aí é que o alvo desses "justiceiros" sempre é o corpo preto e pobre do Rio de Janeiro e se o Estado não começar a cumprir a sua parte do contrato, veremos muitas vezes histórias como a do vendedor de balas Matheus Almeida que foi confundido com um ladrão e apanhou do grupo de moradores de Copacabana. Felizmente para ele, essa história não terminou em tragédia, mas até quando?

Conhecimento é conquista.

Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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