OPINIÃO

Dois filmes brasileiros potentes

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Mais que histórias sobre mulheres resistentes, os filmes "Carvão" e "Pedágio", ambos de Carolina Markowicz, tratam de um Brasil profundo, violento, preconceituoso, de esconderijos e algum mistério. Nos dois, a mulher ao centro é vivida pela mesma atriz, Maeve Jinkings, a mãe de família que, em "Carvão", aceita abrigar um criminoso em sua casa - que assumiu o lugar de seu velho pai - em troca de dinheiro; e a mãe solo que, em "Pedágio", acaba envolvida com o crime para pagar as sessões de cura gay do filho adolescente.

A primeira delas está no ambiente rural, a segunda no urbano. A primeira tem a carvoaria como negócio, os fornos rústicos que queimam e produzem as rochas que seu marido ensaca. A segunda trabalha na rodovia, no pedágio pelo qual passam inúmeras pessoas todos os dias - algumas educadas, outras com pressa, sempre retidas em um espaço que, para se avançar, é preciso pagar uma taxa. Como o carvão do primeiro filme - o elemento que só se produz pelo fogo, pela destruição -, a máquina impessoal que é o pedágio fornece uma interessante representação para se compreender o segundo longa-metragem.

Ambos abordam a corrupção entre pessoas comuns. O dinheiro é o fim. Algum dilema estampa as expressões de Jinkings, que pode ser fria e má em excesso em "Carvão", que é a mãe inconformada e capaz de tudo (ou quase) pelo filho homossexual em "Pedágio". O Brasil profundo que os dois filmes apresentam produz constante mal-estar. Suas personagens centrais encantam-se por homens nada confiáveis que cruzam seus caminhos: a primeira pelo traficante escondido em sua casa, o visitante argentino, a segunda pelo namorado assaltante, o qual ajuda dando informações sobre quem passa pelo pedágio.

Nos dois filmes a homossexualidade está presente, é a forma de Markowicz expor "as coisas como elas são", a natureza incontornável à contramão da sociedade conservadora e religiosa que, às escuras, leva homens casados a se encontrarem com homens casados, mulheres um tanto independentes a se revelarem homofóbicas porque foram criadas dessa forma. Não precisamos de explicações para perceber que a questão envolve uma linhagem de pessoas presas a um ideal de perfeição entoado pelo pastor.

Em "Carvão", o marido de Irene (Jinkings) tem no vizinho de chácara um amante. A certa altura, compra para o outro uma moto e, sobre ela, os homens beijam-se com intensidade. Sozinha, Irene tem desejos e observa no visitante - o traficante - talvez alguém para satisfazê-la. Compra um perfume afrodisíaco, uma calcinha comestível, expõe uma foto sua, quando jovem, ao lado da cama do desejado - para não lhe despertar nada.

Homens e mulheres estão apartados. Nesses dois filmes brasileiros, apenas a relação homossexual reproduz um sentimento verdadeiro, natural, como é o caso da bela sequência em que o adolescente Tiquinho (Kauan Alvarenga) tem um encontro com outro rapaz, alguém que conheceu justamente nas sessões de cura gay promovidas por uma igreja. É ali, sob os "ensinamentos" de uma possibilidade de "reversão", que trocam olhares, que se conhecem, para sedimentar um relacionamento que, mais tarde, confrontará o olhar de uma mãe desapontada, que ainda não aceita, mas prefere deixar as coisas como estão.

Os dois filmes não oferecem desfechos tão diferentes das aberturas. Suas personagens continuam no mesmo lugar, a violência e a inaceitação repousam em silêncio, na estranha normalidade de uma criança com uma arma de brinquedo, na mãe que serve comida enquanto o filho canta no palco. "Carvão" é mais amargo, mais brutal, e nos leva a pessoas que acreditamos não conhecer, a situações até um pouco extraordinárias, ainda que possíveis. Nesse ponto, "Pedágio" destoa: conhecemos bem quem está em cena, seus tropeços e invisibilidades. Ao longo dessa jornada, a protagonista Suellen (Jinkings) descobre que não há "cura" ou "conversão" para certas pessoas e que só resta seguir em frente.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

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