OPINIÃO

Amigos também morrem

31/10/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Uma geração inteira - talvez duas - tomou um baque no último sábado (28) com a notícia da prematura morte de Matthew Perry, o Chandler do seriado mundialmente conhecido "Friends".

Com apenas 54 anos, o ator foi encontrado na sua casa em Los Angeles morto por afogamento dentro de uma banheira.

A morte de Matthew Perry trouxe a mim uma reflexão sobre o apego sentimental que temos por pessoas que só conhecemos por meio das telas do TV ou do Cinema e como as transformamos em praticamente membros do nosso convívio mais íntimo mesmo não tendo nenhum tipo de intimidade real.

O que vi de alguns amigos meus foi um lamento muito sentido e penso que isso se explica muito mais pelo personagem que Perry interpretou em "Friends" do que pelo próprio ator em si. Não que ele não mereça as homenagens, mas é que o sucesso do seriado alinhado ao personagem Chandler Bing transformou a imagem do ator em uma imagem querida por toda a audiência.

"Friends" (1994 - 2004) é um sitcom (Comédia de Situação, de cotidiano) que, vindo basicamente da mesma forma de Seinfeld (1989 - 1998), mostra o relacionamento - quase que mágico - entre jovens americanos que estão tentando a sorte na cidade grande longe do seio familiar. O mote da série é o "estilo de vida americano" da virada do milênio.

Todo mundo que assistiu "Friends" queria ter amigos ao estilo de "Friends". Eu mesmo sonho com isso até hoje: vizinhos de apartamento com a mesma faixa etária que a minha dividindo a vida periodicamente em uma cafeteria. Mesmo o programa ignorando algumas coisas importantes que os olhos atentos da contemporaneidade não deixariam passar se ele fosse feito hoje - estou falando da falta de representatividade como a negra e a LGBT, por exemplo -, ele conquistou uma geração inteira por estabelecer um padrão de amizade ideal.

Porém, os personagens eram, em sua maneira, uma caricatura da juventude estadunidense. O nerd que, embora bem sucedido, ainda enfrenta os problemas como um adolescente; a patricinha mimada que agora não tem mais o cartão de crédito dos pais; a hiponga mística com alma de artista e cabeça na lua; o bonitão ingênuo que se salva apenas pela estética; e a hipercompetitiva e compulsiva por organização que era um patinho feio na juventude, são hipérboles de uma sociedade que, de fato, só existe na TV. Menos o rapaz que tenta disfarçar seu vazio com o bom humor e que trabalha em algo que não faz sentido pra ninguém.

Chandler é reconhecível como um de nós. O mais crível dos amigos. Por isso a identificação é fácil. Una isso ao talento de Perry e, pronto. Você tem um personagem marcante que resiste ao tempo e que é amado por todo mundo.

Alias. Todo mundo queria ser um pouco Chandler. Mas nem conseguimos ter um amigo Chandler. E o paradoxo está aí: o mais verosímil dos amigos é o mais difícil de encontrar. E talvez seja por Isso que nós nos apegamos ao único que conseguimos ver e ouvir: o da TV. Então elegemos o eterno namorado da Mônica como um dos nossos melhores amigos.

Mas essa amizade não se estendeu a Matthew Perry. Depois de "Friends", o ator fez pouquíssimas aparições em sucessos da TV e do Cinema - diferente de seus outros amigos mais famosos como Jennifer Aniston ou David Schwimmer. Dependente químico notório, Perry enfrentava muitos problemas há muito tempo e, muito diferente de seu principal personagem, não era uma pessoa bem humorada ou alegre.

Lembro o quanto eu chorei quando Roberto Gomez Bolaños - Chaves e Chapolin - morreu. Mas eu não entendo até hoje por quem eu chorei, se foi pelo ator ou pelos personagens que moldaram minha infância. E é essa pergunta que me faço hoje. Por quem estou triste, pelo Matthew ou pelo Chandler?

Penso que a tristeza está justamente em percebemos que aquele amigo da TV realmente não existe. A morte de Perry joga na nossa cara a obviedade mais cruel de todas: Friends é um seriado de fantasia e os amigos fantásticos da série só existem na telinha. Amigos também morrem, mesmo o mais fantásticos deles.

Conhecimento é conquista.

Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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