Um dos melhores filmes do ano, "Assassinos da Lua das Flores" está em cartaz nos cinemas. Nos Estados Unidos, a estreia veio acompanhada de debate: poderia seu diretor, Martin Scorsese, um ítalo-americano, fazer um filme que tem ao centro um povo índigena, a saber, o povo Osage? Debates do tipo ficaram mais comuns nos últimos anos e são importantes.
Necessário lembrar que Scorsese já fez outros filmes sobre outros povos, como "A Última Tentação de Cristo", "Kundun" e "Silêncio". Quando um autor aborda uma realidade que não é a sua, da qual ele não descende ou a qual não viveu, mesmo após tê-la estudado, há sempre uma complicação. Há sempre um olhar externo que se impõe.
"Assassinos" é baseado em um livro de David Grann e tem roteiro de Eric Roth, ambos homens brancos. Duas de suas principais personagens são homens brancos, interpretadas por Leonardo DiCaprio e Robert De Niro. O contraponto de peso é a personagem de Lily Gladstone, atriz descendente de indígenas e que interpreta uma Osage.
Scorsese toma cuidado para não reduzir os indígenas à caricatura. Os homens brancos são sempre os vilões. Dos indígenas, vemos, no máximo, algumas figuras tortas, mas sempre vítimas da sanha capitalista dos invasores, interessados em tomar, de diferentes formas, as terras dos nativos, seca de vida, rica em petróleo. Mesmo os agentes do FBI são vistos com alguma distância, forma que Scorsese utiliza para não parecerem heróis.
O protagonista, nosso guia para uma narrativa que na tela chega a mais de três horas, é o homem de Leonardo DiCaprio, um soldado que acaba de retornar da guerra para trabalhar na cidade do tio (De Niro). Logo ele descobre que se casar com uma indígena pode ser lucrativo, já que as terras ricas em petróleo são, em grande parte, dos nativos. Entra em cena Mollie (Gladstone), que se deixa levar pelo jeito sincero e caipira do recém-chegado.
Scorsese conduz-nos a um filme no qual a paisagem épica dos faroestes casa-se ao gangsterismo dos camaradas brancos, como vimos em "Os Bons Companheiros". Mas, em algum ponto, quando o próprio pescoço está em jogo, brancos traem brancos, entregam seus pares no tribunal - o que leva o homem de DiCaprio a repetir (ou a antecipar) o que fez o bandido de Ray Liotta em "Os Bons Companheiros".
Ou seja, Scorsese - mesmo em seu filme mais político, em seu trabalho mais cuidadoso em relação ao tratamento histórico a uma cultura que não é a sua - está ainda no terreno que bem conhece. Entre matadores de aluguel, mafiosos que fingem ser amigos da comunidade, capangas repugnantes e pusilânimes que se vendem por coisa alguma.
No ensaio "Estereótipo, Realismo e Representação Racial", Robert Stam e Ella Shohat alertam que, para falarmos da "imagem" de um grupo social, "devemos fazer perguntas precisas sobre as imagens. Quanto espaço os representantes desses grupos ocupam na tela? São vistos em close ou somente em tomadas a distância? Com que frequência aparecem e por quanto tempo? São personagens ativos, atraentes ou suportes decorativos?", entre outras. Ou seja, é preciso se atentar à forma, à construção da imagem.
"Assassinos" é um filme de um diretor ítalo-americano acostumado a filmes sobre crimes. É um filme policial sobre injustiças e assassinatos de inocentes. Um filme sobre cobiça. Um filme que trata a população indígena com respeito, sem diminuí-la ou torná-la a vítima sem voz, à espera do salvador - o "intermediador branco" - incorporado em uma única personagem destemida e repleta de alma. É, em resumo, um filme de Scorsese. Com todos os contrastes e complexos que isso pode acarretar à abordagem de uma minoria social.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)