Dia da despesa do mês era inesquecível. Sabíamos que isso acontecia quando meu pai recebia o pagamento. No dia seguinte, lá ia minha mãe até o Empório Bizarro, em frente à igreja da Vila Arens, fazer a despesa do mês. Ao lado do empório tinha um fotógrafo e, descendo, a Radio Lux e, mais para baixo, a Vidraçaria São Jorge, da família Massagardi. Claro que alguns dos filhos acompanhavam as compras. Vez ou outra lá estava eu, junto com dona Angelina. Tudo isso, no final da década de 1950, início da de 1960.
Na verdade, era um privilegiado: eu podia ir mais vezes com minha mãe fazer as compras e a justificativa era forte: meu padrinho era quem atendia dona Angelina nas compras, então eu tinha a oportunidade de ganhar uma ou outra bala ou, quem sabe, um doce e ainda, quem sabe, dividir com os irmãos.
Tio João, do outro lado do balcão, abria o talão de notas com os nomes dos produtos, tirava a caneta de trás da orelha (e eu achava isso interessante, tanto que, chegando em casa, corria para fazer o mesmo, mas orelha de garoto de sete anos não conseguia segurar caneta alguma!) e ia anotando os pedidos de minha mãe: 12 quilos de arroz, cinco de feijão, um quilo de pó de café moído na hora e aí seguia a lista.
Calvo, alto, tio João lembrava muito meu avô José, de quem eu ouvia histórias maravilhosas na rua Marrocos, no Bonfiglioli. Por ser meu padrinho, tio João me concedia privilégios: um pacote de bala de mel - e eu gostava de morder a bala, para sentir o gosto do mel escorrendo dentro da boca - ou uma paçoquinha. Acompanhava toda a conversa de dona Angelina com seu irmão João. Enquanto ela escolhia os produtos, surgiam sempre perguntas das famílias. Cada um falando de seus filhos e sobre os irmãos Geraldo, Valdemar, Antonio e Teresa. O que mais gostava de tio João era sua bicicleta que tinha um banquinho no cano entre o selim e o guidão. Era ali que eu gostava de passear, aproveitando alguns momentos com meu padrinho. Gostava também de jogar damas e nisso meu padrinho era um campeão. Aprendi este jogo com ele e me divertia ao ver a seriedade com que jogava. Como qualquer criança, o que eu queria mesmo era movimentar as peças, sem me preocupar com a consequencia e ele, pacientemente, explicava os lances corretos do jogo.
Terminada a lista de compras, dona Angelina pagava a conta e lá íamos para casa, esperar a chegada dos produtos. Isso só acontecia no dia seguinte: O caminhão parava em frente de casa e dele desciam duas ou três caixas de madeira carregadas de gêneros alimentícios. Caixas no chão, produtos rapidamente colocados sobre a mesa pelos funcionários do empório. Após a retirada dos produtos das caixas, os dois conferiam tudo. A lista era entregue para dona Angelina e lá íamos guardar tudo. Coisa de cinco minutos e os produtos estavam no "guarda-comida".
No cotidiano de nossas vidas acabamos perdendo contato com pessoas, nos afastando às vezes sem motivo e sem entender o porquê. Nosso último papo - tio João e eu - tinha acontecido no velório de meu tio Chico, na metade da década de 90. Há alguns anos, quando, me lembro de quando o vi, pela última vez, caminhando pelas ruas. Agora com passos lentos, uma boina na cabeça, para se proteger do vento frio, mas feliz por estar completando 80 anos. "Bem vividos, muito bem vividos", diz ele se despedindo e apressado para ir trabalhar. "Trabalhando ainda tio? Não aposenta não?" "Que é isso? Aposentar pra quê? Se Deus nos deu saúde, vamos trabalhando, vamos vivendo..."
Um forte aperto de mão e um "até breve, apareça lá em casa", mexeram com minha memória, me fizeram voltar mais de 40 anos e ver que a vida é bela, com momentos inesquecíveis! E tio João se foi, sem mais nenhuma despedida. Mas só de imaginar o tabuleiro de dama armado na mesa da sala, enfeitando o ambiente, já me faz sentir criança outra vez...
Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)