Lembro do clima que envolvia estar em uma videolocadora no começo dos anos 2000: as fitas VHS começavam a sumir e as prateleiras eram tomadas pelos DVDs. Em questão de dois anos, ou menos, houve uma substituição completa. E as pessoas aderiram aos DVDs, à boa qualidade da imagem, ao "conforto" de não rebobinar, ao aspecto de tela correto.
Algumas reclamavam, diziam que tinham televisões quadradas e, quando viam os filmes em widescreen, perdiam parte da experiência de "preenchimento total". Quanta ignorância! Mais tarde, foram as telas que ficaram panorâmicas.
Nessa mesma época, algumas pessoas interessadas em cinema - não necessariamente cinéfilos - corriam para as locadoras em busca de filmes que não fossem apenas a boa e velha fórmula do entretenimento rápido americano. Não eram muitos, mas era uma quantidade significativa. Filmes como "Donnie Darko", "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", "Adeus, Lênin!" e, pouco depois, "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" caíram na graça de um público um pouco mais exigente, que reivindicava o pensamento. Esses filmes eram postos na prateleira ao lado dos grandes lançamentos de Hollywood.
Não que todos eles, como "Amélie Poulain" ou "Donnie Darko", fossem grandes. Alguns eram exatamente o oposto. No entanto, tinham algo de provocador, eram diferentes do produto padrão. Alguns tornaram -se clichês, filmes queridos por pseudoestudiosos da sétima arte, um pessoal que usava boina e camiseta de "Laranja Mecânica".
As locadoras - salvo algumas raríssimas exceções - acabaram. Hoje as pessoas consomem filmes por streaming. São postas perante um "cardápio" digital por um preço cômodo. Se não gostam de um filme, em seus primeiros cinco minutos, podem parar e pular para outro, pelo mesmo preço. (Sei de pessoas que ficam tanto tempo escolhendo um filme no streaming que cansam da quantidade e variedade e vão dormir sem ver nada.)
Com frequência eu me pergunto: os algoritmos que comandam esses serviços digitais de filmes e séries colocarão, em algum momento, algo como "Amélie Poulain" ou "Donnie Darko" ao lado de lançamentos como "Missão Impossível" ou "Barbie"?
Ou seja, o problema é maior do que parece: o computador tende sempre a nos servir com o que procuramos, sem nunca deixar espaço para descobrirmos algo ao lado, alguma coisa com capa curiosa, um título chamativo, ou alguma coisa que nos foi indicada pelo balconista, sempre atento às novidades que deveriam ser vistas.
Antes da televisão existir, as pessoas precisavam se locomover aos cinemas para ver filmes. Como as grandes salas, nas quais o público enquadra-se a horários específicos, mais tarde a televisão também impôs uma grade de programação. Com o VHS e, depois, o DVD, o passo foi decisivo rumo à revolução que vemos hoje: as pessoas passaram a ter a opção de assistir seus filmes na hora que quisessem e, de quebra, ganharam um controle remoto para pará-lo.
"Para o mercado de massa, conveniência supera a qualidade", observa o professor David Bordwell em um artigo traduzido por Renato Cabral para a Abraccine, "Quando a mídia se torna gerenciável: Streaming, pesquisa de filmes e o Multiplex Celestial" (disponível on-line). É hora de pensarmos se estamos dispostos a deixar o algoritmo fazer tudo por nós ou se queremos, ainda, fazer algum esforço e, talvez, surpreender-nos.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br