Além de grande diretor de cinema, William Friedkin foi um apreciador de arte. Conhecia sua linguagem, seus mecanismos, sua história. Um cineasta cinéfilo como Martin Scorsese, alguém que falava de filmes com a mesma paixão que falava do "quarteto de cordas de Ravel em fá" ou da "Quinta Sinfonia de Beethoven regida por Carlos Kleiber". Em entrevista dada em 2015 a Sven Mikulec, revelou o desejo de morar na Holanda, "do outro lado da rua do Rijksmuseum, onde eu poderia entrar todos os dias e ver um Vermeer ou um Rembrandt". Isso vindo do homem que, há 50 anos, fez "O Exorcista".
E, goste você ou não de "O Exorcista" (eu tenho minhas reservas; acho que está bem longe de ser o melhor Friedkin), é impossível não reconhecer a importância do filme nos anos 1970 e a influência mantida até hoje. Friedkin havia realizado um belo e barato trabalho que o colocou como um dos novos cineastas criativos dos anos 1960, "Os Rapazes da Banda", e depois engatou um sucesso imediato com "Operação França", que lhe rendeu um Oscar.
"O Exorcista" veio na sequência: um filme ousado, sobre uma menina incorporada pelo Diabo e repleto de cenas chocantes. De tão forte, e com tantos comentários gerados pelo público que deixava as salas de cinema perturbado, virou evento. Fez rios de dinheiro e se transformou no filme de terror "que todos precisavam ver".
O sucesso tornou Friedkin alguém que podia dar as cartas - no tempo em que os diretores ainda davam as cartas - e escolher seu próximo projeto. Começa aí o inferno de Friedkin: sua escolha é por uma nova adaptação de um livro famoso de Georges Arnaud, já levado ao cinema, com grande sucesso, no início dos anos 1950: "O Salário do Medo".
Em "Como a Geração Sexo, Drogas e Rock'n'Roll Salvou Hollywood", Peter Biskind relata que, na estreia de "O Exorcista" em Paris, Friedkin encontrou-se com alguns cineastas franceses - entre eles, Henri-Georges Clouzot, responsável por "O Salário do Medo" e conhecido como o "Hitchcock francês". Entre vinhos e muita conversa, o americano foi questionado pelo experiente realizador sobre o que pretendia fazer em seguida. O que alguém que chegou ao topo tão rápido, com um filme de terror que, na época, já era a terceira maior bilheteria de todos os tempos, poderia fazer em seguida?
Friedkin foi direto ao ponto com Clouzot: "Quero fazer um filme seu. 'O Salário do Medo'". Ainda que não achasse a ideia muito boa, Clouzot deu seu consentimento ao pupilo. O resultado foi uma catástrofe de crítica e bilheteria: a nova versão do livro de Arnaud, "O Comboio do Medo", estreou em 1977, uma semana depois de "Guerra nas Estrelas", o fenômeno "que todos precisavam ver". O filme de Friedkin foi esmagado pela nova onda.
Em "Sorcerers", uma conversa entre Friedkin e o também cineasta Nicolas Winding Refn, disponível no YouTube, o cineasta relembra o dia da estreia de "O Comboio do Medo", quando foi buscar o jornal Los Angeles Times para saber o que seu amigo e crítico de cinema Charles Champlin havia escrito sobre seu mais recente filme. "Ele foi um dos últimos críticos de cinema inteligentes na América", lembra Friedkin. "Quando eu abri o jornal para ler sua crítica, começava com a frase 'O que deu errado?'" Primeiro Friedkin ficou surpreso, depois chocado. "Aquilo ecoou em outros críticos do país, uma massa de reação negativa."
"O Comboio do Medo" desapareceu por um bom tempo. Depois retornou. Virou cult e hoje é apreciado por muita gente. Friedkin, que morreu nesta semana, aos 87 anos, seguiu em frente e entregou, para nossa felicidade, outros grandes filmes, como "Parceiros da Noite" e "Viver e Morrer em Los Angeles". Com a liberdade necessária, sempre foi ousado.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)