Opinião

Sem rótulos

27/07/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Ele ouviu uma voz familiar enquanto pagava os brócolis e a cenoura no caixa do mercado.

Olhou pra trás e era ela.

Ele não sabia se ela não viu que era ele enquanto respondia a atendente que não queria CPF na nota.

Fingiu que não a viu, mas quase bateu o carrinho na pilastra enquanto ia até seu carro a encarando. O mesmo rosto, as mesmas lembranças, mas dessa vez sem o sorriso que lhe era característico.

Difícil saber quem é ele, quem é ela sem voltarmos alguns meses antes nessa história.

Eles se conheceram no metrô. Enquanto iam para o trabalho.

A primeira vez que ele sentou ao lado dela foi por mera coincidência, a segunda porque gostou do perfume e a terceira porque queria conhecer a dona daquele aroma.

Ela lia um livro do Leandro Karnal.

"Ele é bom, amo os livros dele!" Disse ele puxando assunto. Era mentira, não gostava de ler, mas já tinha visto alguns cortes de palestras dele no YouTube.

Uma mentira com boas intenções!

"Já li todos os livros dele!" Disse ela empolgada.

Pronto! O papo fluiu a partir daí. Se a mentira era realmente com boas intenções não se sabe. Nem vale a pena categorizar as intenções alheias. O que se sabe dos dois é que as intenções eram as mesmas.

E de conversas no transporte público trocaram por um café. Ele queria um jantar, mas ela já tinha planos pra noite. Não quiseram esperar mais uma semana.

O jantar veio, na semana seguinte, seguido da sobremesa e outras coisas digna de um casal que não faltava assunto e sobrava química. Algumas coisas que cabem melhor no imaginário do que no papel.

Eles se viam aos fins de semana e até em alguns dias na semana quando era possível. Assistiam série, pediam comida e toda aquela rotina que caracteriza um namoro.

Mesmo que fugissem da conversa.

Ele não queria rotular. Ela não queria assustar.

E assim seguiam empurrando com a barriga. Afinal de contas o que é um rótulo quando a companhia é o que importa?

Era o que falavam pra si mesmo em segredo.

Era carnaval, a cidade deles tinha aqueles bloquinhos típicos. Resolveram ir curtir a folia juntos. No meio da multidão ele viu uns amigos do trabalho. Foi falar com eles.

"E aí gente, tudo bem? Essa é a Cris, minha amiga."

Ele rotulou, ela não gostou. Pra quem queria fugir dos rótulos ele não poderia ter escolhido um pior.

Acabou o carnaval, acabou o clima.

Já dizia o Los Hermanos: "Todo carnaval tem seu fim".

Pena que o deles não saiu como esperado. Ele explicou, tentou amenizar, mas ela se sentiu diminuída. Achou que "amiga" era muito pouco para o que tinham, achou que ele sabia disso.

Naquele dia foi cada um para sua casa. Não se falaram nos próximos dias.

A poeira abaixou e conversaram, parecia que estava tudo bem, só parecia mesmo. Algo havia mudado, um brilho se apagado. Isso tem um nome, como é mesmo?

Ah sim. É magoa!

Não deu pra continuar, dentro da cabeça dela uma pergunta sempre ficaria:

Porque ele me apresentou como amiga?

E junto dessa vinham outras:

Será se ele já ficou com alguma daquelas meninas que estavam lá?

Se não ficou quer ficar?

Eram muitos pontos de interrogação pra quem estava se conhecendo, se gostando...

Tantos pontos de interrogação colocaram um ponto final naquela história.

Por fim não se conheceram como queriam, como poderiam...

Mas a voz dela, ele vai sempre reconhecer.

Seja no metrô, no mercado ou ao seu lado.

Inclusive era essa última a sua preferida.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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