Opinião

Buñuel e o mistério do cinema

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Permaneço com Luis Buñuel. Sua obra é imensa. Não cabe em um único texto. Abordei, em artigo anterior, "Um Cão Andaluz", o primeiro filme do mestre espanhol. Sua vida é cheia de percalços. Depois da passagem por Paris e o envolvimento com os surrealistas, que daria vida também a "A Idade do Ouro", Buñuel faria, na Espanha, o curta-metragem "Terra Sem Pão" e, pouco depois, assistiria às atrocidades da Guerra Civil.

O cineasta nunca foi filiado totalmente a um grupo ou ideologia: via problemas nos comunistas, nos socialistas, nos anarquistas e, claro, nos fascistas. Na Guerra Civil, manteve-se ao lado dos Republicanos. Via problemas na Igreja. Sempre foi anticlerical. É dele a famosa frase "Sou ateu, graças a Deus" e, em fala reproduzida por todos os cantos, já disse que, se tivesse mais alguns anos de vida, gostaria de vivê-los sonhando.

Foi para os Estados Unidos e depois para o México. Entre 1936 e 1947, não dirigiu nada. Sua fase mexicana, iniciada com "Grande Cassino", estende-se até 1965, com "Simão do Deserto". É desse período alguns de seus melhores trabalhos, como "Os Esquecidos", "O Alucinado", "Ensaio de um Crime" e "Nazarin".

Ao retornar para a Espanha, no início dos anos 1960, Buñuel filma "Viridiana", Palma de Ouro em Cannes, que abre uma crise com o franquismo ainda no poder. O filme é considerado escandaloso, é proibido, e o diretor retorna ao México para operar sua vingança contra os burgueses espanhóis: filma "O Anjo Exterminador", obra-prima sobre um grupo da alta sociedade que se vê preso em uma mansão e não consegue achar a saída.

O surrealismo estará presente em suas realizações, das mais às menos lineares. Buñuel manteve-se fiel às suas convicções e nunca deixou de fazer ataques à Igreja, aos militares e à burguesia. Seu filme mais famoso é "A Bela da Tarde", no qual uma esposa aparentemente "recatada e do lar" passa as tardes em um bordel. Não por dinheiro, mas por prazer.

Depois da fase mexicana e dos curtos retornos à Espanha vem a última grande fase, a francesa. "O Diário de uma Camareira", "A Via Láctea", "O Discreto Charme da Burguesia" e "Esse Obscuro Objeto de Desejo" são alguns dos títulos que fazem companhia a "A Bela da Tarde" e ajudaram a estabelecer o diretor como um dos maiores da sétima arte.

"O Discreto Charme" ganhou o Oscar de filme estrangeiro e, pouco antes da premiação, ao ser questionado por jornalistas sobre o prêmio, Buñuel brincou e disse que o havia comprado. "Já paguei os 25 mil dólares que me pediram. Os americanos têm defeitos, mas são homens de palavra." A imprensa não captou o tom irônico. Escândalo em Los Angeles.

No texto "Cinema: Instrumento de Poesia", presente na antologia "A Experiência do Cinema", Buñuel dá-nos uma aula sobre o que o cinema deveria ser e o que, na maior parte dos casos, costuma ser. Deixo aqui apenas um trecho: "Aos filmes falta, em geral, o mistério, elemento essencial a toda obra de arte. Autores, diretores e produtores evitam cuidadosamente perturbar nossa tranquilidade abrindo a janela maravilhosa da tela ao mundo libertador da poesia; preferem fazê-la refletir temas que poderiam ser o prolongamento de nossas vidas comuns, repetir mil vezes o mesmo drama, fazer-nos esquecer as horas penosas do trabalho cotidiano. E tudo isso, como é natural, sancionado pela moral vigente, pela censura governamental e internacional, pela religião, regido pelo bom gosto e temperado de humor branco e de outros prosaicos imperativos da realidade".

 

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br

 

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