Na última semana, o presidente Lula fez um discurso inflamado em defesa da Amazônia aos pés da Torre Eiffel, em Paris, na França, para o evento Power Our Planet, promovido pela Global Citizen. Algo comum na vida de um presidente participar desse tipo de evento internacional, a não ser que o convite para o discursar tenha vindo diretamente de Chris Martin, líder do Coldplay.
Esse convite público e a relação de admiração que Chris Martin tem pelo nosso presidente reverberou nas publicações da banda britânica. Fãs brasileiros de Coldplay que não gostam do Lula mostraram toda sua indignação nos comentários, ameaçando boicotar a banda. Vale lembrar que esse fenômeno já tinha acontecido quando o mesmo vocalista presenteou o mesmo presidente com um violão autografado na passagem do grupo pelo Brasil em março deste ano.
O que eu acho engraçado - para não dizer outra coisa - é a capacidade com que pessoas como essas, que ameaçaram boicotar o Coldplay, se espantam com a simbiose Música e Política. Pior ainda. No caso de bandas como o próprio Coldplay, quem diz gostar da música já deveria ter entendido o que a banda prega.
Isso não foi uma exclusividade da banda de Chris Martin. Nos últimos anos, devido à onda extremista que embalou o bolsonarismo, vários artistas vem sofrendo com o seu posicionamento político. Mesmo esse posicionamento político notoriamente conhecido há muito tempo. Roger Waters (Pink Floyd) foi vaiado por uma minoria barulhenta em seu show em São Paulo em 2018. A vaia veio quando o rosto do ex-presidente Bolsonaro apareceu no telão após frases indicarem que ele e outros líderes pelo mundo seriam símbolos do neofascismo. Para culminar, a hashtag #ELENÃO - famosa campanha anti-Bolsonaro nas eleições daquele ano - apareceu na tela gigante.
Roger Waters sendo Roger Waters. Fazendo exatamente o que sempre cantou e pregou como artista e ativista político. Quem se espantou com isso, obviamente não conhece nada de Pink Floyd ou não entende nenhuma palavra das músicas que são cantadas em inglês.
A barreira do idioma pode explicar um pouco. Há em Washington DC (capital dos EUA) o Newseum, um museu dedicado ao jornalismo. Em 2017, visitei uma exposição lá chamada "Louder Than Words: Rock, Power and Politics" (Mais alto que palavras: Rock, Poder e Política), onde era possível ver a íntima relação que o rock tem com a política. Falando em rock, ele sempre foi um estilo musical político, pois nasce na contracultura e com aspirações progressistas vindas das camadas mais populares. É estranho pensar no rock como um movimento conservador, tradicionalista e fascista.
No Brasil, Bono, o mais político dos rockstars, também sofreu. Sua amizade com o atual presidente sempre foi notória. O irlandês disse certa vez que Lula era um presente do Brasil para o mundo. Procure Bono e Lula no google e verá várias fotos dos dois juntos, sempre se abraçando. Para quem conhece a história de Bono sabe que ele sempre se posicionou. Basta ouvir Sunday Bloody Sunday, primeiro grande hit do U2, que você entenderá isso. Em 2018, logo após Bolsonaro ser eleito, Bono o criticou em seu show em Belfast, Irlanda do Norte. Uma crítica até que tímida se comparada às que ele fez contra Donald Trump.
E mais recente, em seu livro de memórias [Surrender], Bono deixa claro sua aproximação e admiração com a Teologia da Libertação, ala à esquerda da igreja católica. Fãs de U2 à direita do espectro político, assim como os de Coldplay e de Pink Floyd, parecem estar descobrindo agora que seus ídolos na música estão do outro lado no campo de batalha dos seus ídolos na política.
Não dá para ficar decepcionado com Roger Waters, Bono ou Chris Martin. Seria surpresa se algum deles não se manifestassem politicamente ou se suas manifestações defendessem pautas tradicionalmente da direita. Esses artistas são, antes de tudo, progressistas e levantam com orgulho bandeiras que o bolsonarismo, por exemplo, chama da "mimimi".
O engraçado disso tudo é que os fãs que conhecem as posições políticas do Coldplay estão comemorando. "Boicotem o Coldplay! Menos concorrência para comprar ingressos", brincam.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)