Opinião

Dias de Netflix, chá e moletom

16/06/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O Heitor saiu de casa apressado, havia se esquecido da promessa que fez à sua mãe de levar uma caixa de panelas velhas para a tia Judith. Pegou o trambolho, jogou a localização no GPS e partiu. Alicia Keys cantando ao fundo era sua companhia naquele dia frio em que os vidros embaçavam mais que banho demorado em box apertado.

Desembaçador ligado e ainda assim ele mal percebeu que se aproximava do pedágio. Sua tia morava na cidade do lado... tem favores que só fazemos mesmo pra nossa mãe.

Reduziu o carro até a cancela do pedágio, a atendente lhe chamou atenção. Algo mexeu com ele, mas não sabia explicar. O nome da garota apareceu no display e deixou Heitor com aquele nome na cabeça: Stephanie. Assim mesmo com "PH".

Foi o caminho de ida e o de volta pensando na moça. Comeu os bolinhos de chuva da tia Judith pensando que seria legal aproveitá-los na companhia da Stephanie.

Quem sabe ela curtisse ouvir as histórias de sua tia ou compartilhava de seu mesmo gosto musical.

Na semana seguinte visitou a tia na esperança de encontrar com a Stephanie no caminho. Tentativa sem sucesso.

Nessas de achar a Cinderela da cancela, iria falir só em combustível e pedágio.

Imaginou que passar as noites frias ao lado de sua paixão platônica seria mais gostoso que o bolo de fubá com coco da avó Carminha. E olha que ele adora café com bolo.

Imaginou o sabor dos lábios e o tom da risada. Imaginou ela corando as bochechas enquanto ele falava besteiras caminhando no parque ao fim da tarde.

Imaginou uma rotina de casal que nunca teve, se viu preso em desejos descolados de sua realidade de pizza, cerveja e videogame.

Seu ciclo de amizades era amplo, mas o de amores em contradição era do tamanho de uma ervilha. Nenhum de seus relacionamentos avançavam além do segundo encontro. Dates mais rasos que a piscina infantil do Sesc. Se ele ganhasse dez centavos pra cada vez que ouvia um: "Não é você, sou eu" poderia se aposentar antes dos quarenta.

Sua vida era uma eterna friendzone. Um te quero só pra amigo.

Seu único amor tinha sido a Brenda, namorico de colégio. Se apaixonaram entre as equações de segundo grau e as provas de química. Não resistiram ao recreio do último ano.

Aprendeu desde cedo que depois de um pé na bunda só nos resta aceitar e seguir.

Mas ele não estava esperando por isso assim tão novo.

O que fica depois da empolgação? Do primeiro amor nas aulas do ensino médio?

O que fica, ficou até hoje. Saudade e frustração. A pior soma de sentimentos. Uma mistura potente e agressiva que faz a gente se apaixonar até pela moça do pedágio.

Dia desses em casa, bem naqueles dias de Netflix, chá e moletom viu uma estrela cadente. Pensou até em fazer um pedido. Mas porque fazer um pedido pra uma estrela cadente se ela já está caindo?

Era inevitável não refletir a vida em noites assim. Era inevitável não ter os olhos regados. Mesmo que um sorriso amarelo desse o ar da graça. Era um sorriso banhado em lágrimas.

Solidão a longo prazo dói, faz a mente divagar em pensamentos.

Mas quem não quer ficar sozinho em plena sexta sabe que sempre tem a casa da tia, bolinho de chuva, café e quem sabe a moça do pedágio.

A vida é sempre uma surpresa.

 

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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