Dois bons filmes dirigidos por mulheres entraram recentemente no catálogo do Mubi. Falo de "Unclenching the Fists" (sem título nacional), da russa Kira Kovalenko, e "Os Cinco Diabos", da francesa Léa Mysius. Ambas as realizadoras mostram bom controle da câmera e de seus atores. Realizam filmes provocadores e de difícil classificação.
São diferentes em quase tudo. "Unclenching" é o mais forte, não o mais arriscado. Tem uma imagem "lavada", realista, aposta na câmera perto das personagens, com pouco foco profundo. Estamos aqui próximos da experiência física dos irmãos Dardenne. A protagonista, por sinal, muito me lembrou a Rosetta de Émilie Dequenne.
À frente dessa história está Ada, vivida por Milana Aguzarova, dona de uma das melhores interpretações do ano. Ela vive com o irmão mais novo e com o pai em uma região de montanhas na Ossétia do Norte. Pouco a pouco descobrimos seus conflitos e sua prisão: Ada sobrevive em um meio patriarcal e tem de se submeter à vontade dos homens ao redor, a começar pelo pai, que deseja controlar seus passos. Certo dia, seu irmão mais velho retorna para casa e surge para ela uma possibilidade de libertação.
"Os Cinco Diabos" é de outra natureza: saímos de um ponto de vista, o de Ada, para encontrar os mais diferentes olhares de uma França liberal e multiétnica. Mas algo ainda remete ao passado. Eis uma história de misticismo, de bruxaria, diferente de quase tudo o que vimos; uma história sobre uma criança com o poder de identificar os mais diferentes cheiros e, a partir desse sentido aguçado, retornar às histórias passadas de sua família.
Ela, Vicky (Sally Dramé), começa a descobrir o passado de sua mãe (Adèle Exarchopoulos), as relações dela com a tia (Swala Emati), irmã de seu pai (Moustapha Mbengue), e como aquele núcleo familiar aparentemente acomodado explica-se por uma tragédia passada e por amores mal resolvidos. Um filme no qual o componente mágico - os poderes da criança - não reflete os arcos narrativos esperados. Pelo contrário, Mysius posiciona a criança não meramente como observadora do drama e das tragédias.
A pequena Vicky interfere nas realidades passadas e futuras e seu poder de ver não precisa ser explicado. Aos poucos, ela descobre que nada há de belo em sua família. O mundo adulto é marcado por problemas, desejos e atitudes inexplicáveis. Em "Os Cinco Diabos", não se trata de encontrar os adultos nos olhos da criança ou vice-versa. O que se coloca é uma representação do custo de se enxergar o que os outros viveram e ainda vivem.
Alguns dos meus filmes favoritos do ano passado foram dirigidos por mulheres. Entre eles, "A Metamorfose dos Pássaros", de Catarina Vasconcelos, "O Acontecimento", de Audrey Diwan, "Klondike - A Guerra na Ucrânia", de Maryna Er Gorbach, e "Aftersun", de Charlotte Wells. Nas últimas décadas, mulheres cada vez mais têm ganhado espaço como cineastas. O que isso oferece de novo? Além da representatividade, são outros olhares, novas percepções e posicionamentos. É preciso ver o mundo do ponto de vista delas.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br