Opinião

O Centro Histórico, o Museu e eu

24/05/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Uma de minhas maiores diversões quando criança era "subir pra cidade" com minha avó no dia que ela vinha receber sua pensão e aposentadoria. Eu a acompanhava desde nossa casa, no Vianelo. E interesseiro como toda criança, ia porque sempre ganhava algo: um sorvete na Galeria Bocchino (ou um lance do Mirim Dog dependendo da hora e da fome), um livro do Alfarrábio que ficava na Senador (ou quando o dinheiro ajudava, um disco de música clássica da Casa Carlos Gomes)... Mas sempre dava para dar uma passadinha no Solar do Barão. Ali eu ficava enquanto minha avó ia rezar um terço ou fazer algumas orações na Catedral.

Não me lembro da primeira vez exatamente em que estive lá. Entre os cinco, seis anos de idade. Eu gostava de ir lá para ver aquela mobília antiga, os retratos na parede, sentir o cheiro do jardim e saber mais sobre um tempo que não conheci.

As "meninas" que ali trabalhavam sempre foram muito gentis comigo. Sempre. Além, claro, de uma figura sensacional: um rapaz ruivo que trabalhava lá também e que adorava a ferrovia e vivia falando dela. Ele fumava muito (por muito tempo achei que era por gostar tanto de máquinas a vapor que ele mantinha um cigarro continuamente aceso no canto da boca).

Ficamos amigos. Gostava dele porque não me tratava como uma criança, mas porque mantinha comigo um diálogo de iguais. Alguém levava em conta meus pontos de vista.

O tempo passou. Ele se tornou diretor do museu. A amizade continuou.

Mais velho, não ia mais com minha avó. O plano era ir matar aulas de matemática nos jardins do Museu. As minhas queridas amigas que lá trabalhavam faziam cara feia, claro. Mas nem dois segundos depois já estávamos todos rindo. O diretor também era indulgente com essas minhas escapulidas e aproveitava minha ida para mostrar as exposições que iam acontecer. Perguntava o que eu achava. E eu, muito criterioso e atento, achava aquilo fantástico.

Um dia, ele me viu no calçadão. "Vidilli, vem cá. Entra e me diz o que você acha." Sou recebido por uma réplica do portão do famigerado campo de extermínio de Auschwitz com o famoso letreiro: 'Arbeit macht frei'. Era uma exposição sobre os triângulos roxos, as testemunhas de Jeová que tinham sido executados pelo regime nazista de Hitler. Fiquei impressionado com os relatos, as fotos, a montagem. Me revoltei. Como um ser humano permite isso com seus semelhantes? Fiquei cheio de alívio por não viver naquela época e de dúvidas: como fazer para que aquilo nunca mais acontecesse?

O então diretor sorriu ao ver isso tudo em meu rosto.

Anos e anos se passam. Mudei para o Centro Histórico. Hoje tomo sorvete na galeria quando o calor pede e rezo na Catedral. Sinto falta da Casa Carlos Gomes e do Alfarrábio. Mas o Mirim Dog permanece firme me lembrando das coisas boas.

No começo desse mês, recebi uma mensagem do diretor. Sim, o mesmo. Amigo de uma vida. Queria que eu visse em primeira mão mais uma mostra. "Holocausto: para que nunca se negue, para que nunca se esqueça e para que nunca mais se repita". Todos aqueles pensamentos sobre o que tinha visto com os triângulos roxos voltaram à minha mente. Não podemos nunca esquecer o que aconteceu. Ainda mais em tempos tão sombrios como os atuais. Corremos o risco de relativizar tudo. E de repetir as atrocidades.

Ao falar tudo isso para o diretor, vi seu sorriso mais uma vez.

A exposição está lá. Convido todos a fazerem essa experiência. Não apenas de ver a exposição, mas de criar memórias com nosso Solar. Nosso museu, para que faça parte da vida de todos, como é da minha.

Samuel Vidilli é cientista social (svidilli@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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