A história é do próprio diretor Arturo Ripstein: aos 15 anos, ele relembra quando viu o grande Luis Buñuel. "Eu tinha uns 8, 9 anos de idade e via Buñuel em nossa casa. Ele e meu pai tinham em comum a paixão pelas armas, gostavam de praticar tiro ao alvo." Mais tarde, já adolescente, chegou a hora de conhecer um filme de Buñuel, provavelmente o maior cineasta da língua de Cervantes: "Um dia, eu tinha 15 anos quando me levaram para ver 'Nazarin'. Foi um choque. Eu pensava que havia só uma forma de fazer filmes. Ali, descobri que havia um outro caminho", declarou Ripstein ao UOL, em 2008, no Brasil.
Mais tarde, o jovem que se encantou com "Nazarin" - a história de um padre que é vítima de tudo e de todos e é obrigado a cair no mundo até se ver preso - tornar-se-ia assistente de diretor de Buñuel na obra-prima "O Anjo Exterminador", sobre burgueses trancafiados em uma grande casa por motivos inexplicáveis, inclusive a eles próprios.
Ripstein dirigiu seu primeiro filme em 1966, "Tempo de Morrer", a partir de uma história de Gabriel García Márquez, que também assina o roteiro com Carlos Fuentes. Trata-se de um faroeste ambientado em um pequeno povoado do México, história de vingança com ótimas soluções visuais. Décadas mais tarde, Ripstein voltaria a García Márquez com a adaptação de um de seus livros mais famosos para o cinema, "Ninguém Escreve ao Coronel".
O Coronel (Fernando Luján) sobrevive ao tempo com esse posto, esse título: a nós e a todos os outros, será apenas Coronel. Desde os primeiros instantes, vive a melancolia de uma rotina que se repete, dos dias ao lado da mulher, das lembranças do filho morto, das idas à cidade e à beira do lago no qual o barco chega com as cartas, nenhuma escrita para ele.
A melancolia do tempo morto, da inação humana, da irresolução de qualquer problema: enxergamos no Coronel de Ripstein a essência do Coronel de García Márquez (o grande feito do diretor e de sua roteirista, Paz Alicia Garciadiego): a incapacidade do homem em reconhecer que foi deixado para trás, esquecido pelo Estado, pela História, pelo tempo. Justo ele, que lutou nas revoluções mexicanas, que não se cansa de atacar a Igreja.
Agora tem de viver aos sinais da força religiosa na cidade cravada em um lugar perdido no mapa e na qual as cartas chegam sempre às sextas-feiras, levadas ao posto dos Correios que, como todas as outras edificações do local, cai em pedaços. E pior: para lembrá-lo o tempo todo do fantasma do filho morto há a esposa (Marisa Paredes) enlutada.
Como ele, ela tem cabelos brancos e vive em uma casa de espelhos manchados, pouca luz, com um relógio que não funciona. Um lugar pobre. De valor, possuem apenas um galo de briga, animal que era do filho. Quando as contas batem à porta, incluindo a hipoteca da casa, veem-se obrigados a vender o bicho. E vendê-lo significa se dobrar ao sistema que os ignora. Por isso a fala final, de confronto, é tão importante.
Ripstein prefere planos longos e abre mão dos cortes. Sua câmera circula as personagens com movimentos lentos, como se flutuasse por locais escuros e insalubres, entre padres, apostadores, médicos, prostitutas e artistas de circo, por salas de cinema improvisadas, bares e locais feitos para abrigar rinhas de galo, também o circo.
Apesar do bom resultado, não é o melhor de Ripstein. Nos anos 1970, o cineasta enfileirou filmes implacáveis em suas críticas à Igreja e ao patriarcado, como "O Castelo da Pureza", "Santo Ofício" e "A Viúva Negra", todos influenciados pelo mestre Buñuel.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; (ramaral@jj.com.br)