Opinião

Corte de cabelo

04/05/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Nem sempre as coisas que minha mãe mandava fazer eram aceitas imediatamente por mim e meus irmãos. Às vezes, se era para dar um pulo no armazém do seu Valentim, a gente já dizia "manda meu irmão". E dona Angelina não conseguia ficar brava, mas sabia que, um minuto depois a gente se arrependia do que dissera e corria ao armazém. Culpar outros por alguma coisa mal feita era algo que dona Angelina sabia quem dizia a verdade ou não. A vida sempre ensina que "o mais novo é sempre o culpado", já que em brincadeira de criança mordomo não tem vez, principalmente quando são crianças que moram em bairro afastado do Centro... Mas dona Angelina, com seus olhos azuis, vislumbrava a verdade dos fatos e sabia quem era inocente e quem era culpado. Mas se tinha algo que não dava para "escapar" era na hora de cortar o cabelo. E dona Angelina fazia questão que a gente não deixasse o cabelo crescer demais. Primeiro porque os Beatles ainda não existiam e segundo porque "cabelo comprido é coisa de mariquinha"... Dinheiro trocado no bolso lá íamos para o salão do seu Waldemar. Na verdade, eu não gostava muito de ir cortar o cabelo, principalmente porque não gostava muito de conversar e porque seu Waldemar vivia perguntando coisas, contando histórias. E eu não via a hora de levantar daquela cadeira... Gostava de ouvir o barulho do motorzinho passando pela cabeça, cortando o cabelo. E os tipos de cortes eram variados: a gente tinha que cortar "topete" que eu odiava, mas que não tinha como fugir dele: criança tinha que usar o corte "topete". Meia dúzia de fios de cabelo na frente e o resto o motorzinho cortava. Outro corte que a gente gostava, mas dona Angelina achava que crescia rápido e logo tinha que pagar de novo era o corte "escovinha". Para justificar o crescimento rápido, ela dizia que este tipo de corte de cabelo a gente poderia usar quando estivesse no Quartel. Por último, o estilo "americano", quando o motorzinho "tirava" dois ou três centímetros do cabelo, na parte debaixo, depois a tesoura reduzia o volume todo e penteava-se de lado, com uma divisão no lado esquerdo da cabeça. Este corte era usado para quem já estava trabalhando, pois ficava mais "com cara de homem". Mas depois de um tempo penteava-se tudo para trás e, com o pente dava uma "puxadinha" em uns fios de cabelo que caíam na testa. Só para ver se as menininhas olhavam para a gente. Mas não me lembro de pessoas tirando sarro dos cortes de cabelo que usávamos. Primeiro porque seu Waldemar cortava direitinho e era uma pessoa paciente. Quantas e quantas vezes ele teve que parar o corte, pois a gente tinha vontade de ir ao banheiro e não podia esperar. E seu Waldemar, pacientemente, esperava pela gente. Dava vontade de ir embora, mas a loção de barba que ele usava para desinfetar a ação da navalha era suficiente para fazer a gente "ir até o fim" no corte. Seu Waldemar só conheci na infância. Primeiro, com um salão na avenida São Paulo, na casa da família Motta, depois quando construiu o salão na frente de sua casa, na rua da Várzea. Depois disso, na metade da década de 60, quando ainda curtia a adolescência, o salão visitado era dos irmãos Durães, na avenida São Paulo, perto da Sifco. Ali o corte de cabelo tinha um gosto especial: tinha jornal para se ler ou revistinha do pato Donald ou do tio Patinhas. E isso a gente podia levar até a cadeira na hora do corte. Isso significava que não precisava ficar conversando com ninguém. Fazia de conta que estava lendo e pronto! E o barbeiro sabia respeitar a vontade do freguês...

Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)

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