Opinião

De Cazuza a Scooby-Doo

30/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Quando eu era criança, em dias de chuva meu pai juntava a família para jogarmos baralho ou dominó. Nascido no norte de Minas, o calor era rotina e dias de chuvas eram tão raros que eu torcia pela chuva, pra poder jogar com a família reunida. Uma vez até tentei aprender a dança da chuva em um gibi da turma da Mônica.

Eu gostava mais de todos juntos, rindo, comendo a torta de frango da minha mãe e tomando guaraná do que do jogo em si. Direto eu ficava perdido e perguntava: - É a vez de quem? E meu pai repetia sempre a mesma frase: - É sempre a vez de quem pergunta.

Todos ríamos, esses são os momentos que mais sinto falta quando vejo a chuva bater na janela do apartamento.

Já tem quase cinco anos que saí da casa dos meus pais, mas a saudade nunca abranda, quase três décadas de lembranças nunca irão se apagar.

Hoje a vida me deu um presente, alguém para chamar de amor, companheira, ou em alguns momentos só gritar de lá do banheiro: - Amor, traz a toalha que eu esqueci.

E ela irá reclamar que eu esqueci pela décima vez, mas ainda irá me trazer a toalha e me entregar com um beijo apaixonado, contemplativo e taxativo: - Se apresse que já estamos 20 minutos atrasados.

Ela que é meu par, minha companheira, minha parceira, meu número, sabe? Tipo aquela camisa que encaixa perfeita ao corpo, que a gente tem dó de colocar na máquina junto das outras, quase que um uniforme. Ela que faz acordar sorrindo ao ver ela com o dedo na boca vestindo minha camiseta do Mickey, ela que faz minha manhã mais feliz com aquele sorriso só porque eu levei o café na cama acompanhado de um post it escrito "EU TE AMO".

Ela diz que o verdadeiro "eu te amo" é o café, a demonstração, a frase é só adorno. Com ela eu aprendi que tem tanta coisa que a gente faz pra demonstrar o quanto queremos alguém do nosso lado que falar "Eu te amo" é quase uma redução do amor.

Um dia em mais uma de nossas noites aleatórias e inusitadas em que estávamos deitados esparramados um sobre o outro falando de tudo e de nada ao mesmo tempo. De Cazuza a Scooby-Doo, eu vi que amava ela, que eu não queria estar em outro lugar que não naqueles braços, no alcance daqueles olhos que brilham pro meu miojo com salsicha ou pro meu fricassê. Pra minha bermuda rasgada ou meu terno risca de giz.

A gente funciona assim mesmo, porque sou eu e porque é ela. E isso basta.

Me pego pensando em quando achamos essa sintonia, esse match perfeito. Em quando a ficha caiu de que a vida é boa com ela, seja na praia, no cinema ou no sofá domingo depois do Fantástico, em um domingo daqueles que a preguiça é mais forte que o café que vamos precisar pra encarar a segunda. Aquele mesmo café que eu levo na cama todas as manhãs pra ela, só pra ficar mais tempo curtindo aquela cara de preguiça com dengo que só ela tem.

Aí que eu vi que pouco importa quando virou amor, desde que ela saiba que é com ela que quero passar o resto dos meus dias.

E, nessa de perguntar quando virou amor, eu me lembrei do meu pai jogando baralho. É sempre a vez de quem pergunta. E como eu aprendi com meu pai desde criança, eu quero aproveitar a delícia desse momento, pois dias de chuva que acalmam o coração são raros. Pessoas pra andar de mãos dadas na vida? Mais raras ainda.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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