Opinião

Biscoito de nata

02/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Quando eu era criança só existia leite de saquinho. Provavelmente quem nasceu no final da década de 90 nem sabe o que é isso. Nada que uma pesquisa no google não resolva. Nessa época, minha mãe falava que só era saudável beber o leite depois de ferver. Eu odiava a nata que ficava por cima depois de fervido, achava nojento. Coava toda vez, antes de beber.

Sempre resmungava que a nata era algo inútil, que só servia pra me dar o trabalho de tirar.

Repetia isso por inúmeras vezes, até que um dia minha mãe me surpreendeu com mais um de seus quitutes. Um biscoito macio, que derretia na boca. Fico com água na boca só em lembrar. Curioso perguntei pra ela de que era feito aquele biscoito tão gostoso.

"É feito de nata meu filho!", respondeu ela com um sorriso nos lábios e aquela simplicidade que era só dela. Me deixando ali embasbacado, sem entender como algo que aparentemente tão ruim podia ser matéria-prima pra algo tão gostoso. Talvez Lavoisier consiga explicar (mais uma pesquisa pro Google).

Dia desses eu e minha namorada ficamos deitados na cama nos olhando e foi quando me veio a seguinte pergunta:

"Onde você estava todo esse tempo? A gente se dá tão bem, nosso relacionamento é tão saudável, leve e maduro e ainda sem perder a intensidade que eu queria ter te conhecido antes."

"Se você tivesse me conhecido antes não teria dado certo, foram as experiências passadas que me tornaram quem eu sou hoje."

E é curioso como, além de verdadeiras essas palavras, dela são pesadas, mostrando o tamanho da minha ansiedade. Esse desejo de quero tudo pra hoje, pra agora. Onde até o momento presente eu queria ter vivido lá do passado. Doido isso né? Mas quem nunca?

Agindo feito criança viajando de carro com os pais, que fica perguntando de cinco em cinco minutos se já chegou que até esquece de aproveitar o caminho, olhar pela janela e contemplar a paisagem.

Isso me fez pensar, tenho muito medo de deixar a vida passar em meio a tantos "Já chegou?" e não aproveitar a travessia, a janela do carro.

Não é só estar presente, é estar consciente, aproveitar o momento, aproveitar a vida.

Nem é papo coach nem nada, muito pelo contrário, é sobre a gente poder se permitir, virar a chave, e tocar a sanfoninha do foda-se e aceitar que até os momentos ruins lhe trouxeram até aqui, fazem parte de quem somos hoje.

É que é tão difícil descobrir, entender a nossa essência, que a gente passa boa parte do tempo fugindo de tudo que não nos agrada, sem extrair os aprendizados, principalmente dos eventos ruins.

Acho que estes é quem são os melhores professores.

Passamos a vida inteira reclamando das segundas, sejam elas feiras ou intenções. Reclamando do trabalho, reclamando do síndico ou de tudo ou todos que não atendem nossas expectativas.

E foi aí que eu entendi que meu relacionamento é leve não porque eu tenho a namorada perfeita, até mesmo porque perfeito ninguém é. Mas sim porque ela é perfeita pra mim, dentro de toda a química e amor que construímos e mantemos, sempre presentes e conscientes.

Lembrei da minha mãe, do biscoito de nata e do mesmo pensamento que tive ainda quando era criança.

Foram todas as experiencias ruins que nos serviram de matéria-prima aos bons momentos de hoje.

Inclusive agora, escrevo este texto tomando um café e comendo um biscoito. De nata, é claro.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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