OPINIÃO

Fraternidade e cidadania

26/02/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O período quaresmal, que se iniciou no último dia 22 de fevereiro, quarta-feira de cinzas, lembra os quarenta (40) dias que Jesus passou no deserto se preparando para a sua missão e os quarenta (40) anos em que o povo de Israel andou no deserto rumo à terra prometida. É um tempo litúrgico de preparação à celebração da Páscoa do Senhor; uma época de conversão e de transformação da própria vida através da penitência, da oração contínua, da escuta atenta e amorosa da Palavra de Deus. É o tempo em que a Igreja Católica no Brasil mantém a Campanha da Fraternidade, que tem por objetivo despertar a solidariedade de seus fiéis e de toda a sociedade em relação a um problema concreto que envolve toda a nação, buscando soluções ao mesmo.

"A "fraternidade" é expressão de uma antropologia segundo a qual os seres humanos, no fundo, são todos irmãos, membros de uma única família humana, com dignidade e direitos fundamentais comuns. Decorre daí, como consequência ética, que essa dignidade deve ser reconhecida em cada ser humano e os seus direitos fundamentais, respeitados e promovidos por todos. O que vale para um vale pata todos. Essa também é a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos" (Dom Odilo P. Scherer) (O Estado- 14/11/2009-A2).

Escolhe-se anualmente um tópico diretamente relacionado a questões sociais, priorizando reflexões sobre as circunstâncias e situações que exacerbam as desigualdades entre os seres humanos. Ao mesmo tempo, incentiva a renovação do compromisso de cidadania, pautado pela valorização da empatia e da solidariedade entre os homens, transformando-se num privilegiado momento de evangelização nacional, aliado a um canal de expressão daqueles que, na sociedade, marginalizados, nunca têm voz, nem vez.

O tema e o lema de 2023 são, respectivamente, "Fraternidade e fome" e "Dai-lhes vós mesmos de comer" (Mt 14,16). Pela terceira vez o assunto de manifesta notoriedade é tratado pela CNBB que a aponta "a fome como um escândalo e um contratestemunho". Num país como o Brasil, líder mundial na produção de alimentos, ver pessoas privados dos mesmos, revela muito sobre nossa economia, nossa cultura, nossa política e nossos cidadãos. Afinal, como podemos admitir que cidadãos, famílias e até comunidades inteiras passem fome? A Campanha da Fraternidade desse ano propõe refletir o tema a partir da perspectiva cristã entendendo, sobretudo, que não existe fé sem obras e que qualquer discurso religioso sem uma prática de vida coerente torna-se estéril e vazio.

Trata-se de uma abordagem de grande relevância. Com efeito, buscamos ser felizes, mas não conseguimos nos realizar coletivamente. Sonhamos em ser iguais, mas cultuamos os piores contrastes. O egoísmo gera o anonimato que impede o surgimento de alianças sólidas entre os indivíduos e as relações tendem a ser fortuitas e passageiras. O tempo passa mais rápido que a nossa capacidade de doação e um cenário promissor à solidariedade acaba sempre se distanciando. Assim, não haverá prosperidade enquanto persistir a concentração de riquezas nas mãos de poucos; as gritantes injustiças cometidas sob os mais frágeis argumentos; a corrupção devassadora e outros males provocados pela prevalência das questões econômicas sobre as sociais - verdadeiros acintes aos valores cristãos.

Vivemos em constante tensão, preocupados com a sobrevivência e isolados em nossos mundos particulares. Reiteramos, por isso, que, diante da ameaça que paira sobre todos, é hora de assimilarmos gestos de boa vontade e unirmos nossas mãos em atitudes concretas de partilha, para a construção de uma nova sociedade, em que as desigualdades não sejam tão ostensivas e chocantes e o Direito possa efetivamente regular a ordem, para progredirmos em conjunto rumo à tão almejada paz, compreendida como fruto da eliminação da miséria e do desenvolvimento integral de todos os povos. Na verdade, viemos para servir.

JOÃO CARLOS JOSÉ MARTINELLI é advogado, jornalista, escritor, professor universitário e ex-presidente das Academias Jundiaienses de Letras e de Letras Jurídicas. (martinelliadv@hotmail.com).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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