Ao voltar do cinema, tarde da noite, comentei com meu irmão que havia assistido a um filme chamado "A Baleia". Ele logo ficou curioso para saber do que trata. "Um homem com obesidade severa nos últimos dias de sua vida", expliquei, em poucas palavras. "Nossa, por que alguém resolve fazer um filme assim, tratando de algo tão forte?"
Minha mãe acompanhou meu irmão e concordou com o questionamento. Muita gente já pensou o mesmo ao se deparar com algum filme com situações cruéis e incômodas. Por que os artistas insistem em expor o pior de nós e do mundo que habitamos? A resposta é simples: por que a arte - não apenas a do cinema - reflete o que somos e embute questionamentos, amplia nosso olhar ao real enquanto representação, tira-nos do lugar-comum.
Nesse sentido, a arte precisa incomodar. Não nego, em muitos casos, seu caráter escapista. Não desprezo o entretenimento. Faz parte. Quem nunca ligou um filme para "esquecer" do mundo lá fora? Claro que isso não vale para um filme como "A Baleia", que não chega a ser grande, tampouco descartável. A nova empreitada de Darren Aronofsky não é apenas sobre "um homem com obesidade severa nos últimos dias de sua vida". Ao meu irmão eu dei a sinopse ou menos, apenas a primeira camada - o que talvez tenha sido injusto.
Se eu tivesse dito que é um filme sobre um homem que compreendeu a inevitabilidade da morte e encontrou na filha adolescente o sentido de sua existência, teria sido mais honesto. Ou, no nível estético, que é um filme sobre um homem preso à escuridão de seu cotidiano - a começar pela tela escura, na câmera que nunca o revela em seu computador, em suas aulas a distância - e que só às vezes encontra a luz do lado de fora ou nas memórias. Poderia ter explicado o filme de muitas formas e seu incômodo seria o mesmo.
Jornadas com pessoas no limite existem aos montes no cinema. Em "Não Matarás", do polonês Kieslowski, por exemplo, seguimos um assassino em um dia de sua vida, os minutos intermináveis de seu crime hediondo e, depois, na segunda parte, o julgamento do Estado e sua pena de morte. Por que Kieslowski resolveu nos mostrar algo tão horrível? Sua obra - uma das dez da monumental série "O Decálogo" - faz uma crítica à pena de morte ao equiparar a crueldade do Estado à do indivíduo (sem nunca aliviar o segundo).
Em "Violência Gratuita", o austríaco Michael Haneke revela-nos a crueldade de dois rapazes que sequestram uma família, levada a uma série de jogos que desemboca em sofrimento e morte. Por que faz isso? Ao utilizar recursos como a câmera subjetiva e a manipulação deliberada na famosa cena em que um dos assassinos utiliza o controle remoto para fazer o filme voltar, Haneke questiona a manipulação dos meios audiovisuais na atualidade.
A violência não se limita ao horror. Há filmes nos quais um tapa pode ser mais chocante do que o mar de sangue que sai do elevador em "O Iluminado". Penso, por exemplo, no tapa que Peter Falk desfere em Gena Rowlands perto do fim de "Uma Mulher Sob Influência". Nada nos prepara para aquilo. É visceral, desnorteante, e nos evidencia o pior da vida de um casal que, entre explosões e gestos de carinho, termina unido.
É preciso compreender o lugar da violência no cinema, sobretudo quando não é gratuita. O mesmo vale para o sexo. Não se vive só de comédias românticas com Julia Roberts. Nem só dos muitos filmes de terror que ocupam os cinemas e se tornam eventos na mídia ao causarem vômitos e fugas das salas, como no caso do recente "Terrifier 2". Aronofsky está longe desse grupo. "A Baleia" merece ser visto e discutido.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)