Opinião

O homem do Vic Maltema

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Seu Pedro, não sei porque, me metia medo. Disposto, forte, trabalhador, era motorista de caminhão. Um caminhão especial: aquele que fazia transporte do Vic Maltema, produto parecido com os que estão hoje no mercado e que era misturado com o leite, sabor chocolate. Mas o medo que tinha dele deveria estar relacionado ao seu problema físico: o motorista perdera um braço em um acidente.

Nunca o vi dirigindo, mas ficava imaginando como ele conseguia manobrar aquele veículo com um braço apenas. Claro que, por causa de meu medo, jamais cheguei até ele ou algum de seus filhos e perguntei como manobrava o caminhão. Jamais, também, tive coragem de perguntar como foi o acidente com seu braço.

Mas nesta minha falta de coragem, mesmo ficando vermelho, gostava de ficar perto dele, mesmo que não trocasse uma palavra com seu Pedro. Minha satisfação era estar perto de uma pessoa famosa. E eu o achava famoso. Nunca soube explicar o porquê, mas o achava assim porque estava escrito no caminhão que dirigia "Vic Maltema".

Isso, para mim, o tornava famoso. Dirigindo pela cidade, pelas estradas, pelas avenidas. Gostava de ver o caminhão estacionado em frente à sua casa. Me lembro que até entrei uma vez na cabine. Claro que junto com os filhos de seu Pedro - Edson e Adalberto - ou os primos Adilson e Luciano, que orientavam os comandos. Escorregava no banco para alcançar com o pé no acelerador. Roncava com a boca para um fa-de-conta de dirigir pelas ruas do bairro. Só não tive coragem de tirar uma das mãos do volante para me imaginar com seu Pedro... E chegava em casa feliz para dizer aos meus pais que "tinha dirigido" o caminhão de Vic Maltema.

Claro que ele nunca me presenteou com uma lata de Vic Maltema. Também nunca tive coragem de pedir uma. Meu irmão mais velho dizia que ele era só um funcionário, que não tinha salário grande, mas na minha cabeça de criança de seis anos, seu Pedro era dono daquilo. Com aquele "baita" caminhão.

Mas no dia do pagamento de meu pai, lá ia eu até o armazém do seu Valentim comprar uma lata do produto. E isso, às vezes, era uma loucura, pois enchia a colher e a levava direto à boca. Vic Maltema puro! Sem leite, grudando na boca, lambuzando o rosto, mas saboreando um produto que chegou ao armazém graças ao homem que eu conhecia.

Além de trabalhar com aquele caminhão, seu Pedro se dedicava a organizar romarias até Aparecida do Norte. Ele e dona Lídia, sua esposa, lotavam ônibus até a cidade onde existia apenas a igreja velha da santa. E quando, durante a missa, lia-se o aviso de que a romaria estava sendo organizada pelo seu Pedro e dona Lídia, eu não me controlava e dizia para quem estava do meu lado na igreja: "Conheço ele, mora perto da minha casa. Ele não tem um braço e dirige um baita caminhão..." Pronto! Estava realizado! Eu conhecia as pessoas que haviam sido anunciadas como organizadoras da romaria! Isso era satisfação demais para mim!

Mas o tempo é muito cruel com a gente. Afasta as pessoas de nós e só percebemos isso quando a saudade aparece. Seu Pedro, que morava na avenida São Paulo, perto do bar do Bizuca, mudou-se para a Vila Arens e o caminhão do Vic Maltema desapareceu de perto de casa. Perdi o contato com ele, com a família, o tempo afastou um do outro. A casa onde eu morava não existe mais. A casa onde ele morava também não existe mais. O que existe, hoje, é a certeza de que a velocidade do tempo é muito maior do que qualquer caminhão. Mesmo que seja de Vic Maltema.

Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)

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