Cate Blanchett

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A rainha angelical de "Elizabeth", papel que tornou Cate Blanchett mundialmente famosa, é o oposto de Lydia Tár, que deve dar à atriz seu terceiro Oscar. Cada um à sua maneira, em momentos diferentes da vida da atriz, revelam sua versatilidade - apenas dois exemplos de uma carreira cheia de grandes personagens, históricos ou fictícios.

A rainha Elizabeth é do grupo dos históricos. É a filha de Ana Bolena, a rainha decapitada cuja história está no pouco lembrado "Ana dos Mil Dias", de 1969. Elizabeth, de quem não duvidamos da boa vontade, da disposição à verdade, é chamada de "rainha bastarda". Sua mãe é uma das mulheres que Henrique VIII usou para tentar ter um filho homem. Calhou da filha excluída tornar-se rainha e, por muitos anos, ocupar o trono inglês.

Elizabeth é justa e luta como pode para não se dobrar aos meandros da política e seus conchavos. Não quer casar por conveniência com o herdeiro do trono francês e, a certa altura, vai às lágrimas ao saber da morte de crianças em uma batalha em solo escocês. Em outra passagem, tem de dialogar com um grupo de homens católicos (ela era protestante) em busca da pacificação de seu reino, de início turbulento. Na tela, uma heroína.

Lydia Tár é de outra natureza. Em "Tár", do diretor Todd Field, Blanchett interpreta a maestro da renomada Orquestra de Berlim. É uma das maiores compositoras-regentes vivas. E é uma personagem fictícia. Uma mulher manipuladora que, no auge da carreira, é acusada de ter abusado emocionalmente de uma suposta amante, jovem musicista que comete suicídio e de quem, durante o filme todo, vemos apenas os cabelos vermelhos ou fotos.

A manipuladora também é humana. Temos dificuldade para defini-la. Palpável, fria, a melhor em seu ofício, a mãe que acaricia o pé da filha enquanto esta dorme, que ouve sons que podem ser produto de sua mente e encontra maneiras - baseadas em seu poder - para favorecer uma jovem musicista (outra) por quem está interessada.

Em mais de duas horas a bordo de um filme complexo, em que nada está fora do lugar e em que cada diálogo tem sua função de existir (ainda que as peças não se encaixem de pronto), encontramos uma mulher para odiar, igualmente um ser humano do qual sentimos pena. "Tár" aborda os abusos do poder, o ego, a maldade, a entrega à arte e, por isso, no ponto em que vive Lydia, a defesa dos gênios incorretos, de vidas pessoais problemáticas.

A melhor sequência do filme é a da discussão de Lydia com um aluno negro que se diz pangênero. À professora, ele afirma que não gosta de Johann Sebastian Bach. Por que um estudante de música não gostaria de Bach? Segundo o rapaz, o compositor era misógino. Para Lydia, mesmo não apoiando os desvios da vida pessoal do gênio, isso não faz sentido: a arte não pode ser cancelada por causa da vida pessoal de seu autor.

É um choque de olhares e gerações. E é provável que a jovem Elizabeth, caso vivesse em nossos tempos, postar-se-ia ao lado do rapaz negro e pangênero. A rainha não queria depender de homens e casamentos, não suportava o julgamento masculino e, não é difícil concluir, não suportaria a música saída de um misógino como seu próprio pai.

O cinema leva-nos a conclusões curiosas: um filme sobre uma personagem histórica como "Elizabeth" pode ser mais falso em seu invólucro luxuoso que um filme sobre um ser fictício, de fotografia gélida, de pessoas de mil faces, como "Tár". Neles e em tantos outros como "O Aviador", "Babel", "Notas Sobre um Escândalo", "Não Estou Lá", "Blue Jasmine", "Carol" e "Manifesto", Cate Blanchett entregou um pouco de seu melhor. É uma atriz completa.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; contato em ramaral@jj.com.br

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