Crônica da semana

28/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Quando eu era criança eu gostava de conversar com meu vizinho, o Sr. Vigilio. Ele tinha várias histórias de sua infância, de quando morava em um sítio no sul da Bahia. Um dos meus sonhos com nove anos era aprender andar a cavalo só pelas narrativas que ele me descrevia com tamanha precisão e brilho nos olhos.

Me recordo que eu chegava da escola por volta do meio-dia, almoçava, assistia um pouco de televisão e ia tirar um cochilo. O hábito de dormir depois do almoço foi algo que aprendi com a minha mãe, ela dizia que recarregava as energias e ainda ajudava a digestão. Não entendo muito disso, mas acho que ela estava certa, pois eu acordava com animação para fazer as lições da escola e depois ir brincar com meus vizinhos na rua.

Era sempre a mesma coisa, a mesma rotina: escola, casa, almoço, tv, cochilo, tarefas e brincar na rua. Melhor ainda quando Sr. Vigilio aparecia, contando suas histórias. A gente sabia que ele inventava um pouco pra tornar tudo mais interessante, mas acho que essa que era a graça. Acho que esse senhorzinho grisalho de quase 90 anos foi o primeiro áudio book que eu tive contato. Era um livro de crônicas quase tão extenso quanto os do Veríssimo (o filho, não o pai).

Meu pai era outro contador de histórias, mas com ele era mais piada, mais brincadeiras e menos lirismo, mas eram tão boas quanto. Acho que daí aprendi a mesclar esses dois pontos nos meus textos. Engraçado como a gente nem se dá conta de como as experiencias da infância nos marcam, nos moldam...

À medida que os anos passavam eu queria poder ter as minhas próprias histórias, ter o que contar para meus futuros filhos, sobrinhos e netos. Acho que daí esse lado cronista começou a se aflorar.

Eu cresci, consegui espaço em dois jornais, onde semanalmente tem pessoas que me leem e espero poder ao fim da leitura arrancar-lhes um sorriso ou dois.

Levo essa meta para a vida, até na terapia conto meus problemas com o lirismo típico de um escritor. Acho que sou o atendimento preferido da Marcia, minha terapeuta. Ela se diverte com a forma que conto meus problemas, esses dias ela nem acreditou quando eu disse que só escolhi ela por conta do nome: Marcia! Afinal de contas, Marcia é realmente nome de terapeuta. Não tinha como dar errado. Me sinto tão à vontade que faço minhas sessões (online) com uma latinha de cerveja não mão. Uma terapia como outra terapia, melhor impossível.

Esses dias ela disse que eu tenho o hábito de libertar o escritor além do papel, mesclar realidade e literatura. Mas como que separa? Ninguém me ensinou.

Eu estava contando do meu último encontro e a Marcia disse que eu me apaixono fácil. Acho que só porque depois do primeiro encontro já tinha escrito uma crônica, mas nem é culpa minha, ou é... Mas é que a cada texto uma descoberta, ela me rouba um sorriso aqui outro ali, e eu fico bobo entre essas palavras, tentando separar a realidade da ficção, como se fosse possível tirar o romantismo de meus textos.

Lembrei da minha mãe catando feijão na sacada. Inclusive estou escrevendo essas palavras assim como ela, sentado na sacada. Catando ideias, organizando pensamentos e querendo entender que poder é esse que essa garota tem, que com uma lembrança consegue tirar tanto de mim: um sorriso, algumas dúvidas e até a crônica da semana.

Tem horas que dá até vontade de mudar de terapeuta, mas onde é que eu vou encontrar outra Marcia? Melhor mesmo é torcer pra que ela não leia minhas crônicas, porque essa de me apaixonar fácil não tem remédio. É mal de canceriano.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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