Pelo menos

12/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Me recordo da primeira nota baixa que tirei na escola, foi em geografia. A prova valia 10 e eu tirei 2.

Relevos brasileiros, me perdi entre planaltos e planícies, vales e montanhas. Engraçado que depois de receber a prova, minhas maiores preocupações eram em como justificar aquela nota vergonhosa para o meu pai e em saber quanto que o Thiago, meu amigo, tinha tirado na prova dele. Saber que ele tirou 3,5 me deixou menos preocupado, pois pelo menos eu não ia me ferrar sozinho.

No fim das contas, a mãe dele colocou ele de castigo, uma semana sem poder brincar na rua. Já os meus pais me deixaram um mês sem o Nintendo e me fizeram estudar todo dia uma hora após o almoço. De resultado eu demorei mais pra zerar a fita nova do Mário e criei o hábito de estudo, ainda assim não aprendi geografia da sexta série, mas consegui passar na média.

Desta lembrança o que mais me chama a atenção foi o sentimento que tive ao receber a prova e descobrir a minha nota. O sentimento de saber da nota do meu amigo, esse sentimento de comparação resumido no "pelo menos".

Eu que nunca fui bom com geografia e nem com química. Tive outros 2, alguns 3,5 e até alguns zeros no decorrer da fase escolar e o sentimento era sempre o mesmo: "Como será que o Thi foi na prova?" Me lembro de uma vez que eu tirei nota baixa em química e ele tirou 9,5, foi um dualismo em minha mente, onde apesar de feliz por meu amigo se dar bem dessa vez, eu não tinha nem o argumento de "Mas não foi só eu". Junto com a alegria ao ver a nota do meu amigo eu vi o meu "pelo menos" ir se esvaindo das minhas mãos, me senti até mal ao perceber que o fracasso do Thiago era minha gota de esperança para me justificar aos meus pais, era minha tábua de salvação.

E hoje eu lembro de tudo isso com um quê de nostalgia, preenchido por um sorriso de canto de boca e uma reflexão: Quantas vezes na vida, mesmo depois de grande, a gente não se debruça nos braços do "pelo menos"?

Ah, eu perdi meu emprego, mas pelo menos vou receber a rescisão. Meu namorado me bateu, mas pelo menos a gente não era casado. Eu amassei o carro no poste, mas pelo menos tinha seguro.

E assim a gente passa a aceitar que a vida é igual cebola, dividida em camadas, onde o sucesso em apenas uma dessas camadas justifica ou pelo menos (olha ele aí de novo) ameniza o fracasso das outras.

A vida é inteira, ninguém consegue produzir em um dia de trabalho depois de saber da perda de um ente querido, ninguém consegue jogar uma partida de xadrez com os amigos depois de brigar feio com a esposa. A gente até pode e deve transitar entre as áreas da vida, mas é claro que uma área afeta a outra, não existe esse blindar-se de forma intransponível como essa ideia de divisão de áreas da vida nos sugere.

Acredito em inteligência emocional pra saber passar por problemas e seguir, mas não acho que tenhamos que ser tão simplistas, nivelar tudo por baixo com essa régua do pelo menos. Sempre busquei o ponto do meio, onde é possível sim ser feliz por inteiro, mesmo que a duras penas, puxar pra si essa responsabilidade tanto pelos sucessos, quanto pelos fracassos, sem precisar se pendurar no lado bom das coisas pra esconder os lados ruins. Até mesmo porque a vida não é gangorra e quando as luzes do parquinho se apagam...

A vida continua.

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.