O que Bolsonaro quis dizer ele não disse

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Enquanto os brasileiros lambiam as feridas deixadas pela Seleção após ser eliminada nos pÊnaltis para a Croácia nas quartas de final da Copa do Qatar, dezenas de bolsonaristas se amontoavam próximo ao Palácio do Alvorada (residência oficial do presidente da República) na expectativa de ouvir um pronunciamento de Jair Bolsonaro, na última sexta-feira (9).

Para maioria do país, que ainda sofria com a derrota na Copa, pouco importava o que o presidente falaria ou não, porém, para um grupo de apoiadores de Bolsonaro que resolveu estabelecer acampamento em Brasília há uma semana, o encontro com o político era aguardado com ansiedade. Muitos ali queriam ouvir a ordem derradeira, o comando final. Mas o que ouviram no cercadinho improvisado no jardim presidencial foi um discurso dúbio de quase 15 minutos que disse tudo, menos o que Bolsonaro queria realmente dizer.

Após 40 dias de silêncio, o presidente derrotado em outubro gastou a maior parte do tempo relembrando coisas que disse durante sua gestão como "As Forças Armadas são essenciais em qualquer país do mundo. Sempre disse ao longo desses quatro anos que as Forças Armadas são o último obstáculo para o socialismo" ou "Nunca saí das quatro linhas da Constituição". Um verdadeiro festival de mais do mesmo para alimentar seus apoiadores que se digladiavam entre gritos de apoio e pedidos mal educados de silêncio.

Talvez nem os bolsonaristas presentes entenderam o discurso. Às vezes parecia um pedido de desculpas pelo silêncio de mais de 40 dias, em outros momentos parecia uma convocatória para continuarem se manifestando, e algumas partes dava a falsa esperança de que tudo daria certo no final. O fato é que Bolsonaro patinou em suas palavras e tentou não escorregar na verdadeira intenção de sua fala.

Após assistir o seu discurso completo disponibilizado à exaustão na internet e ouvir algumas análises nas redes, eu resolvi compartilhar com você o que eu entendi do último discurso do presidente Jair Bolsonaro - e pode ter sido o último mesmo - aos seus apoiadores. Vou basicamente fazer uma "tradução livre" do que ele disse.

Quando Bolsonaro fala sobre as Forças Armadas e de ser o seu chefe supremo, mas que nunca saiu das quatro linhas da Constituição, deu a entender que na verdade ele gostaria de ter um exército, uma frota armada para se manter no poder, mas que, na realidade, ele não tem. Indo mais longe e observando como ele olhava para os seus apoiadores ali, apontando suas câmeras para ele enquanto discursava, é possível perceber que o presidente queria ter formado uma milícia armada ou um grupo grande de pessoas que se armasse e lutasse por ele quando chegasse a hora, porém ele não conseguiu nada além daquelas pessoas de verde e amarelo.

Se não tem tu, vai tu mesmo, não é isso? Para Bolsonaro, sim. Já que ele não conseguiu formar sua frente de batalha como desejava, o presidente exalta a persistência de seus apoiadores quando diz que "eu sou como cada um de vocês aqui". Ele deixa claro que as manifestações precisam continuar na frente dos quartéis, o que significa mostrar para a opinião pública o quanto de relevância ele ainda possui. Quanto mais gente continuar nos acampamentos bolsonaristas, mais poder de barganha Bolsonaro terá para tentar lidar com iminente enxurrada de condenações que chegará em sua porta a partir de 2023. Isso significa que quanto mais gente estiver do lado dele, uma eventual prisão o tornaria um mártir, o que não seria de todo ruim pensando no capital político que acumularia.

As pessoas nos quartéis pedindo intervenção foi o único poder que restou ao presidente. Mas não é um poder para ser ignorado, pois esse movimento, embora caricato, é bem grande e resistente. Porém, o silêncio de Bolsonaro o enfraqueceu em alguns setores bolsonaristas e ele se preocupa com isso, já que não pode se dar ao luxo de perder ninguém que ainda acredita nele. Em seu discurso ele diz: "Mas peço a vocês: não critiquem sem ter certeza absoluta do que está acontecendo". Ou seja, ele pede para que as críticas sobre ele e sua maneira de lidar com a situação - o silêncio - parem, ou todo esse poder que ele ainda tem pode começar a se fragmentar e, pior, pode parar nas mãos de outra pessoa que surja falando exatamente o que os bolsonaristas querem ouvir.

O resumo da ópera é: "Perdemos, não há nada que eu possa fazer por vocês, mas vocês podem fazer muito por mim. Continuem me apoiando, fazendo barulho e se manifestando, pois usarei o apoio de vocês para amenizar a hecatombe que cairá em cima de mim a partir do dia 1º de janeiro". Pra mim, foi isso que Bolsonaro quis dizer, mas não disse.

Conhecimento é conquista.

Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação pela USP (felipeschadt@gmail.com)

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