Há filmes ambientados unicamente no Natal. Suas histórias correm nos dias de festa, de árvores com presentes e, muitos deles nos Estados Unidos, com neve abundante. Outros utilizam o Natal como a cereja do bolo, mensagem de esperança. Nenhum deles, entre os do segundo grupo, fez tão bem quanto “A Felicidade Não Se Compra”.
O filme todo comporta a vida de um homem. E o Natal, passageiro mas marcante, é sobre o que esse homem tornou-se. A cidade em que habita representa um local, uma terra, uma nação antes do cinismo da guerra. Chama-se Bedford Falls. Não adianta procurar no Google. Ela não existe. Ou melhor, ela existe - ou existiu - em muitas outras, em outro tempo.
Começamos pela cidade e seus tipos carismáticos, pelo mundo que deu certo - ou quase. O diretor, Frank Capra, é um idealista, um democrata. No Brasil de hoje seria chamado de sonhador ou comunista. Suas histórias e condução deixaram de fazer sentido na América do pós-guerra. “A Felicidade Não se Compra” foi lançado em 1946, logo após a Segunda Guerra. Fez sucesso, recebeu indicações ao Oscar, mas parecia não fazer mais sentido frente à modernidade das narrativas sobre homens tortos e rebeldes.
Nos anos 1930, Capra reinou absoluto. Para a Grande Depressão, suas histórias, recheadas com voltas por cima e valorização do humano, permeadas pela comédia que começava a se sofisticar, faziam sucesso entre aqueles que pagavam alguns centavos para fugir da realidade e sua miséria. “A Felicidade Não Se Compra” poderia ter sido feito nessa época.
Alguns de seus sinais, contudo, mostram que essa produção natalina talvez já levasse algo novo, um mundo em que homens incríveis como George Bailey (James Stewart) podiam deixar a barba crescer e pensar em suicídio. O filme inicia com um chamado dos deuses, das estrelas com voz, a um anjo que quer ganhar asas. Àquele que espera a vantagem alada é dada uma missão: ele precisa ir ao planeta Terra e convencer Bailey a não tirar a própria vida, sobre uma ponte, em noite com neve. Para tanto, o anjo fará com que ele enxergue sua cidade sem sua existência. Na esperança do Natal, uma presença.
E Bailey, na ponte, enxerga o mundo sob sua ausência. O que teria ocorrido às muitas vidas que o cercam. O espírito do Natal, segundo Capra, a partir da história de Philip Van Doren Stern, é justamente isso: uma intervenção divina que leva o homem a ver sua importância para a operação não de milagres, mas de atos. Atos que salvam vidas.
Sob as formas de Stewart, o herói está acima de qualquer suspeita. Custa a envelhecer. Sua amada, interpretada por Donna Reed, tem a forma adulta que não o atinge. É como se ela - a atriz que mais tarde faria uma prostituta em “A Um Passo da Eternidade” - solicitasse, em seu olhar fixo de desejo, que ele resgatasse-a dos impropérios da realidade, o que ele faz.
Bailey quer ir embora de Bedford Falls. Quer pegar a estrada, estudar. Aquela cidade parece pequena demais para ele. A morte do pai e os negócios da família seguram-no no local em que cresceu. Ele casa-se, tem filhos e deve enfrentar o vilão encarnado em Lionel Barrymore, explorador das pessoas pobres, o vilão com alcance social de Capra.
Outros filmes do cineasta foram igualmente mágicos. “Aconteceu Naquela Noite” é uma das melhores comédias de todos os tempos, sobre uma menina rica que foge de um casamento e se apaixona pelo repórter em seu encalço. “A Mulher Faz o Homem” é ainda um dos melhores filmes políticos do cinema americano, com o mesmo Stewart livrando Washington da corrupção, o homem simples à sombra dos monumentos de uma suposta democracia.
“A Felicidade Não se Compra” é seu ponto mais alto. Como lembra o crítico Roger Ebert, a melhor coisa que poderia ter ocorrido à produção foi cair em domínio público. Hoje, o filme pode ser reproduzido livremente, sem que sejam exigidos os pagamentos por direitos autorais. Foi assim que cresceu sua fama e se deu sua redescoberta: sem um dono, à disposição de todos, passou a ganhar sessões e mais sessões, nos canais da televisão americana, a cada Natal - até se tornar, para alguns, uma tradição à altura da ceia.
Outros bons filmes sobre o Natal merecem ser lembrados. “Agora Seremos Felizes”, de 1944, é outra obra-prima do cinema clássico sobre a luta de uma família para não perder as raízes. “Uma História de Natal”, pouco lembrado no Brasil, é dos anos 1980 e conta a história de um menino que deseja ganhar uma espingarda de ar comprimido do Papai Noel. Como o filme de Capra, leva-nos a um universo inexistente em que habitam, a perder de vista, sonhos, anjos, deuses, pais e mães, pessoas de bom coração.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com