Um velho marinheiro chamado Marlow conta sua jornada por um rio tropical da África, em meio a floresta tão exuberante quanto aterradora. Procura um sujeito afamado, reconhecido por muitos como "o" cara, e que se meteu numa região inóspita, disposto a fazer fortuna e a enriquecer ainda mais seus empregadores. Depara-se, no entanto, com "o horror". Seria esse um resumo canhestro de "O coração das trevas", livro do escritor de língua inglesa Joseph Conrad.
O volume é reconhecidamente um libelo contra o imperialismo europeu, que por séculos saqueou o continente africano. A história foi adaptada para o cinema por Francis Ford "Poderoso Chefão" Coppola, na década de 1970, e ganhou o título de "Apocalipse Now". O filme levou prêmio de festival e seu diretor à falência.
Quanto ao filme, Rafael Amaral, colega nesta página, pode falar com maior pertinência e conhecimento. Vamos ao livro, na tradução de Marcos Santarrita.
O enredo transcorre na segunda metade do século 19. Experiente capitão de navio, Marlow foi contratado por empresa anglo-francesa que comercializa marfim para procurar um certo Kurtz, alto funcionário da organização, desaparecido em região da África atlântica e meridional. Deve ingressar no continente navegando pelo rio Congo. O marinheiro não esperava nada especial, mas as ruínas com que se depara são desoladoras. Onde o branco europeu pousou, Marlow encontra ruínas. De coisas e de gente. Nada se salva. Navega num barco retirado do fundo do rio e mal recauchutado. Das muitas cenas memoráveis, destaco duas: o cemitério dos vivos e a expedição perdida.
O "cemitério" era um depósito de gente esfarrapada, todos negros contratados pela empresa, e que, depois de muito trabalho, adoecem e amontoam-se à espera da morte. Da expedição, o leitor fica sabendo que ela contava com dezenas de homens e de muares, a transportar marfim do interior para o litoral do continente. E que se perdeu, com seus bens mais valiosos: a saber, os animais de carga. Ingleses e franceses já não contam com escravizados. Há décadas exploram mão de obra assalariada, de gente embrutecida e descartável, desprezada por quem se encastela no topo da pirâmide social. Nada além do "horror", como reitera Kurtz.
Joseph Conrad nasceu na Polônia. Seu pai, ativista político, foi exilado e levou a família para a Inglaterra. Conrad ingressou muito jovem na marinha inglesa e correu o mundo. "Lorde Jim", seu romance mais conhecido, é fruto dessas andanças pelo mar. "Coração das trevas" também nasce de uma viagem realizada pelo autor. Ele partiu de Bordeaux, na França, em 1889, e seguiu para o Congo. Percorreu 150 quilômetros rio acima. Não achou "postos avançados de civilização", como europeus chamavam vilarejos e entrepostos plantados à beira do rio, mas muito abandono.
O escritor se referia à colonização da África como "a mais vil corrida para a pilhagem que já desfigurou a história da consciência humana". A rota pelo Congo arruinou sua saúde. Abandonou a navegação e passou a escrever profissionalmente. "Coração das trevas" foi publicado em 1899, uma década depois dessa viagem.
Fernando Pellegrini Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)