Séries? Só de vez em quando

23/11/2022 | Tempo de leitura: 3 min

Filmes tomam tempo. Séries, ainda mais. É preciso fazer escolhas: cinéfilos e críticos, com muitos filmes na fila de espera e pouco tempo à disposição, nem sempre conseguem embarcar nas séries. São vários capítulos, horas, isso sem falar de novas temporadas. Por outro lado, é inegável que algumas, de grandes realizadores, são obrigatórias.

Caso de "O Decálogo", que o mestre Kieslowski fez para a televisão estatal polonesa. Quem ama cinema e séries precisa assistir, pelo menos uma vez, aos dez capítulos desse trabalho monumental do diretor de "A Trilogia das Cores" e "A Dupla Vida de Veronique". A cada episódio encontramos uma história que recobre um mandamento bíblico, todas passadas em um conjunto de prédios do ainda país comunista, todas sobre pessoas comuns.

Na Suécia, uma década antes, Ingmar Bergman fez "Cenas de um Casamento", série em cinco capítulos que também ganhou uma versão para o cinema. No início dos anos 1980, Rainer Werner Fassbinder deu-nos outro monumento, "Berlin Alexanderplatz", baseado no livro de Alfred Döblin - e ninguém representou o inferno, no capítulo final, como Fassbinder, que infelizmente morreu cedo. Para muitos, essa série é seu maior feito.

Há outros casos de séries que todo mundo precisa ver antes de morrer. "Twin Peaks", de David Lynch, mesmo com as enrolações de sua segunda temporada, é uma delas. "Carlos", de Olivier Assayas, é outra que, em seus poucos capítulos, temporada única, consegue captar com pulsão ímpar o clima político dos anos 1960 e 1970 a partir de personagem um tanto controversa, o terrorista Carlos, o Chacal.

Atualmente em cartaz no Mubi, serviço de streaming para filmes "de arte", podemos encontrar outra pérola: "O Reino", de Lars von Trier, o criador por trás de "Dogville" e "Melancolia", o mesmo que nos chocou com "Anticristo" e "A Casa que Jack Construiu". A primeira e a segunda temporadas, ambas dos anos 1990, já estão em cartaz. A terceira, de 2022, chega em dezembro. É um evento digno de aplauso.

O título refere-se a um hospital. Nome forte, nada a ver com as pessoas fracas - médicos, enfermeiras, estudantes, pacientes - que o habitam. A história contada no prólogo dá uma ideia do reino em que colocamos nossos olhos: antes de ser um hospital, espaço de ciência e cura, sua área servia a um lago em que homens e mulheres lavavam roupas, descoloriam tecidos, rito diário entre o vapor e o movimento, ideia da antiguidade.

Lars faz uma série em poucos capítulos sobre nossas fragilidades, sobre como nós, seres da ciência, da prosperidade, não suportamos as superstições e o que não podemos explicar. Lars, um cético que talvez acredite no sobrenatural, molda uma colcha de retalhos a partir de várias pequenas histórias entre o cômico e o trágico, que vão dos crimes cometidos por um novo médico sueco ao roubo de um crânio, das investidas de um grupo maçônico no interior do hospital à gestação de uma mulher que pode estar esperando o filho de um espírito - personagem que nasce adulta e se revela o centro da série, na pele de Udo Kier.

As imagens são propositalmente desleixadas, livres, quase nunca bem enquadradas. Perdemo-nos nos corredores desse hospital em que qualquer coisa pode acontecer, em que o choro dos espíritos pode ser ouvido, em que os profissionais que ali habitam sabotam qualquer chance de a razão suplantar nossas ações mais mesquinhas e exemplos (vários) de como ainda somos - e sempre seremos - seres incorretos.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (rafaelamaralreis@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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