Passar de fase

05/11/2022 | Tempo de leitura: 3 min

(Pode ser lido ouvindo "Folia no meu Quarto", do Teatro Mágico)

Eu me lembro quando eu era criança que era só ouvir o tema de fim de ano da Globo e já sentia um aperto no coração. Era tocar a música da Simone e todo aquele papo de "Então é Natal", e o que você fez? Vinham os medos de se eu iria passar sem recuperação em todas as matérias, pois só assim meus pais me deixariam ficar até tarde jogando o cartucho novo do Mário.

Eu me lembro de um fim de ano que fiquei comendo Doritos e bebendo Coca-Cola pra não dormir, esperando o especial do Roberto Carlos acabar pra poder enfim jogar videogame na tv da sala. Até hoje quando ouço a música "Detalhes", só me lembro do Mário e daquela fase da água que demorei quase a madrugada toda pra passar.

Demorou, mas passei.

Ufa, passou como todas as fases sempre passam, sejam elas da água, do fogo ou os castelos intermináveis, não importam. Acho que por isso odeio quando depois de um problema ou algo que me deixa triste vem alguém me dizer que vai passar, que no final

dará tudo certo. Isso eu sei, mas naquele momento eu só quero sentir a dor, mesmo sabendo que de um jeito ou de outro no fim as coisas entram nos eixos. Seja zerando o cartucho ou desligando a tv, cansado, querendo ir dormir pra começar tudo no outro dia. Isso mesmo! Começar tudo de novo. Naquela época não existia Memory card, não tinha como salvar. Se você nasceu depois dos anos 2000 talvez não entenda coisas da década de 90.

Hoje não tenho mais o Nintendinho e nem jogo Mario world, mas ainda tenho fases pra enfrentar, pra passar, e essas agora não têm um password ou dica da internet. É na raça mesmo, tipo quando a gente colocava o controle embaixo da camisa pra não machucar os dedos.

Saudades de quando todos os problemas eram os cartuchos, códigos, cantos secretos e fases inexploradas.

Essa saudade com pitadas de nostalgia é um misto de sentimentos, uma mistura de ruim com bom, se é que me entende.

O menino cresceu, trocou o videogame pela caneta, as fases agora são na vida real, mas viram ficção no papel, os desejos viram enredos, os amigos personagens e as frustrações viram plot twist no final.

Ah o poder da caneta, essa marota que quando beija o papel da vazão à alma, faz o coração explodir e os olhos saltarem, sejam eles de quem lê ou quem escreve.

Esse casamento perfeito entra razão e emoção, desejo e realidade, papel e caneta, onde a aliança é a expectativa do leitor que mesmo quando se quebra feito vidro fica até o final esperando o desfecho prometido.

Nem é dezembro ainda, mesmo assim já ouço a voz da Simone me perguntando o que eu fiz. E minha resposta é que eu vivi nessa eterna fase da água, encharcado de esperanças e desejos. Mas se a pergunta fosse o que eu escrevi, aí sim eu poderia encher o peito pra dizer que eu vivi em cada palavra, em cada texto não só os meus sonhos, mas o de cada leitor, em cada sorriso eu sorri com mais dentes que me cabiam na boca, pois não era só o meu sorriso, mas de todos que com os olhos acompanhavam aquelas palavras.

Em quase uma década de escritor ainda me assusta como abro meu coração ao papel e à caneta de forma que jamais me abri pra qualquer namorada ou terapeuta, fico pensando que, mesmo que esquecido em mim, tem muito daquele garoto de 10 anos que esperava pela tv livre para jogar o cartucho preferido, sem saber que os anos passariam, os gostos mudariam, um adulto iria se formar e ainda assim a vida seria uma trajetória onde dia após dia a gente sempre quer a mesma coisa, passar de fase. Seja ela qual for.

Jefferson Ribeiro é escritor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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