A resistência de Dalai Lama

01/11/2022 | Tempo de leitura: 3 min

Perante os militares chineses que acabam de invadir seu território, o Tibete, Dalai Lama emudece. Sua resistência, até ali, é seu silêncio. Os militares não o compreendem. Perto de sua maturidade, o líder espiritual já é maduro demais, não pode concordar com a tomada de seu espaço - sua nação - pelo vizinho, a gigante China comunista de Mao Tsé-Tung.

A incursão de Martin Scorsese por esse período da vida do décimo quarto Dalai Lama é de uma beleza fora do comum. É como se Scorsese buscasse quase um anti-drama com seu "Kundun". Pelo menos até a metade, não há uma ação declarada, um confronto, uma barreira. "Sua inação é sua ação. É a antítese do que conhecemos como drama no Ocidente. Mas por que não pode existir um filme em que o drama acontece internamente?", questiona o próprio Scorsese em entrevista a Richard Schickel, em "Conversas com Scorsese".

Da primeira parte tiramos o espírito, o olhar a uma cultura longínqua, a impressão de aprisionamento que aos poucos se reveste de liberdade. Viver o seu mundo, com seu povo, apartado - não para sempre - dos conflitos vistos em um livro, ou em um documentário sobre a bomba de Hiroshima. Dalai Lama (Tenzin Thuthob Tsarong) quer saber como é o mundo lá fora. A invasão chinesa mostra que não pode ignorar outras nações, sobretudo as vizinhas.

E nem em seu casulo ele estará totalmente longe dos problemas: por ser uma criança em boa parte da história, é natural que escondam dele algumas situações; de sua sacada, com o olho pregado ao telescópio, assiste ao movimento das pessoas, um prisioneiro com corrente nas pernas, mais tarde o dançar da neve no alto das montanhas de seu território - a dança do tempo que abre o filme, a erosão do espaço, da natureza, como se nada fosse perene.

Antes de deixar o Tibete, Dalai Lama tenta dialogar com Mao. Vai a Pequim, encontra uma sociedade aparentemente moderna: aviões, carros, vidros elétricos que, por curiosidade, ele aciona com um botão enquanto é levado ao palácio onde está o autor do "Livro Vermelho". A aparente cordialidade ofusca as diferenças; o dominador não deixa o dominado completar uma frase. A Dalai Lama, Mao afirma que a religião é um veneno.

As diferenças impõem-se, principalmente no que diz respeito ao uso da violência. O palácio de Dalai Lama será bombardeado e, para sobreviver de outra maneira que não de joelhos, ele precisa fugir pelas montanhas e chegar à fronteira com a Índia. "Meus inimigos não serão nada. Meus amigos não serão nada. Eu também não serei nada. Do mesmo modo que tudo não será nada", afirma ele, em narração, na noite em que deixa seu território.

O que simboliza o filme é a desintegração de uma mandala de areia, da imagem de um templo visto do alto. A areia une-se, as cores misturam-se e depois vemos o próprio Dalai Lama jogar esses grãos em um lago. As partículas diferentes tornam-se uma só matéria e retornam à natureza - ciclo que coroa o desapego às coisas do mundo e nossa impermanência.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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