Totalizadas as urnas, consolidado o resultado da eleição nacional e escolhido o dono do trono presidencial para o próximo mandato, proliferam análises de que o país corre risco de caminhar, superada a votação definitiva, para uma espécie de terceiro turno: um questionamento mais ou menos institucionalizado do resultado da eleição mais polarizada desde a redemocratização. Pouca coisa seria mais danosa às urgências de um país que já passou os últimos meses imerso em paralisia eleitoral, dividido, não só em nível político, mas também social, e em clima de expectativa, até mesmo em termos de atividade econômica.
Por mais rachado que o Brasil saia das urnas com a vitória apertada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre Jair Messias Bolsonaro (PL), é imperioso que o país retome o enfrentamento vigoroso de suas demandas socioeconômicas e administrativas, e que não desperdice os últimos meses do ano apenas imerso em um debate que só tende a atrasar essa necessidade urgente.
É preciso que o país e seus principais atores políticos desçam do palanque e passem a administrar o fim de 2022, republicanamente, como preparação para os próximos quatro anos de mandato, por mais que a campanha eleitoral tenha deixado feridas abertas, cicatrizes e pendências jurídicas, que não devem ser ignoradas, mas precisam ser tratadas em seus devidos fóruns.
Respeitar a voz soberana das urnas é o primeiro passo para que o país, e todos os seus cidadãos, possam começar um processo de reconciliação imprescindível para que o desemprego siga recuando, para que a economia acelere no caminho de recuperação, para que os desafios da pauta ambiental sejam atacados e, principalmente, para que as demandas da parcela mais vulnerável dos brasileiros, que antes de eleitores são cidadãos, sejam ouvidas.
E, no campo social, talvez a maior urgência a se enfrentar seja o escândalo da fome no país que se orgulha de ser uma espécie de celeiro ou dispensa do planeta. Tema de campanha em um debate sobre o real tamanho do exército de famintos – que, seja qual for, deveria envergonhar a nação do agronegócio – a insegurança alimentar emitiu mais um sinal de alerta máximo, às vésperas do segundo turno das eleições.
Levantamento divulgado na última quarta-feira pelo Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), da Fundação Oswaldo Cruz, sobre a desnutrição dos bebês brasileiros, mostra que apenas no ano passado houve 2.979 hospitalizações de crianças abaixo de 1 ano por esse motivo no Sistema Único de Saúde. É como se a cada dia oito brasileirinhos dessem entrada em leitos na unidade de saúde em consequência de deficiências nutricionais.
É o ponto mais alarmante de uma realidade que vem se agravando desde 2016, segundo o trabalho de pesquisadores da Fiocruz, quando a taxa de hospitalização começou a subir, chegando à pior marca para um ano inteiro em 2021. Foram 113 internações de bebês por desnutrição para cada 100 mil nascidos vivos – assustadores 51% a mais que em 2011, quando houve a menor marca nos 13 anos avaliados.
Para além de confrontar análises que, durante a campanha eleitoral, questionavam o aumento da fome no país – sob o argumento de que esse que esse crescimento não estaria se refletindo em indicadores de saúde ligados à prevalência da fome, - o estudo da Fiocruz indica que o desafio é tão real quanto urgente, e se reflete pesadamente sobre os brasileiros mais frágeis e vulneráveis.
Mostra ainda o retrato de um país que a partir do fim do pleito eleitoral precisa de calmaria, de reconciliação e principalmente de trabalho árduo, unido, desde já, para resolver problemas incomparavelmente mais importantes que os debates ideológicos – ainda que estes tendam a continuar – e eventuais queixas sobre o resultado das urnas.
José Roberto Charone é advogado (charoneadvogados.com.br)