Viver dói

27/10/2022 | Tempo de leitura: 3 min

Reli uma colocação da escritora Rachel de Queiroz (1910-2003): "Doer, dói sempre. Só não dói depois de morto. Porque a vida toda é um doer. E eu sou essa gente que se dói inteira porque não vive só na superfície das coisas". Olhou os fatos com sabedoria e escreveu além das aparências, na profundidade que ultrapassa o tempo. Autora de destaque na ficção social nordestina, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras.

É verdade mesmo que "a vida toda é um doer". Doer das doenças, doer das ausências, das impossibilidades, dos sonhos desfeitos, da falta de perspectiva, das separações, do ombro que falta, da dor do outro...

Deveria ter uns 12 anos quando me deparei com os versos do poeta, advogado e diplomata brasileiro Francisco Otaviano (1825-1889): "Quem passou pela vida em branca nuvem/ e em plácido repouso adormeceu;/ quem não sentiu o fio da desgraça, / quem passou pela vida e não sofreu, / foi espectro de homem, não foi homem, / só passou pela vida e não viveu". Tocou-me tanto que guardei para a vida inteira. Convivi muito com os mais belos contos de fada e, talvez, com os versos de Otaviano concluí que eram devaneios, embora tivessem encantado minha infância.

Ao ler Rachel sobre não viver na superfície das coisas, me veio a lembrança da moça que conheci em um leito do Hospital São Vicente, ao lado daquela que fui visitar. Tempo de muitos questionamentos sobre a Aids, causada pelo Vírus HIV. As duas, soropositivas e o quarto de isolamento. Ela estava sem visita e eu, portanto, me dirigia às duas enquanto conversava. Em um dado momento, ela me perguntou se eu poderia tocar no braço dela. Não entendi o motivo, mas afirmei que sim e me dirigi a ela. Ao segurar levemente o seu braço, começou a chorar. Disse-me que há tempo sentia na pele apenas o toque de luva e de agulha de injeção. Não me diz respeito que tipo de postura a levou a se contaminar, mas sim me comover com a dor dela. Logo eu que adoro abraços com laços.

Cada um enfrenta de um jeito a sua dor. Alguns procuram refúgio no álcool, nas drogas, na promiscuidade sexual. Esconderijo, no entanto, não fortalece a pessoa e "doer dói sempre".

Há muita realidade ainda na música Aquarela de Toquinho, Vinícius de Moraes e Maurizio Fabrizio: "...E o futuro é uma astronave/ Que tentamos pilotar/ Não tem tempo, nem piedade/ Nem tem hora de chegar/ Sem pedir licença, muda a nossa vida/ E depois convida a rir ou chorar..."

A intensidade da dor varia, mas é preciso procurar o sopro que acalma as chagas. Nesses acontecimentos, há em mim um silêncio interior.  Meu sopro está na Cruz de Jesus Cristo. Ele me diz que Seu sangue é o bálsamo que acalma as angústias, Sua coroa de espinhos dá um sentido novo ao pensamento, Seus joelhos machucados, doloridos, são sustento para meus passos, Suas mãos com chagas seguram as minhas e Seu Amor é feito de eternidade. Conforme disse Santa Teresinha do Menino Jesus: "Acho que nesses momentos de grande tristeza tem-se a necessidade de olhar para o céu em lugar de chorar". E Santa Teresa D'Ávila: "...Quem a Deus tem, mesmo que passe por momentos difíceis, sendo Deus o seu tesouro, nada lhe falta. SÓ DEUS BASTA!"

A fé e a esperança são o sopro que passa pelo silêncio que minhas dores deixam.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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