Artigo

A culpa é de quem?

Por Elisa Carlos | 09/10/2022 | Tempo de leitura: 4 min
Jornal de Jundiaí

Arquivo pessoal

Elisa e família
Elisa e família

Passei muitos anos acreditando naquela típica frase: a culpa é da mãe. Passei muitas décadas trabalhando nos divãs da psicanálise a minha relação com a minha mãe. Hoje aos 40 anos, mãe, com uma filha nascida de mim e uma de coração, acho engraçada, para não dizer completamente inconsistente e bizarra, e a interpreto como uma confortável ‘desresponsabilização’ dos meus atos.

Como filha era muito mais fácil culpar minha mãe de todo mal que havia acontecido na minha vida do que tomar as rédeas e tocar em frente (e estendo essa culpa para o meu pai também). Me lembro do dia em que a ficha caiu. A psicanalista (que já deveria estar de saco cheio) me perguntou: “Ok! A culpa é da sua família, e daí? O que você vai fazer com isso?”. Demorou muito tempo para entender que enquanto eu coloco a responsabilidade da minha vida na mão de qualquer outra pessoa, mino a capacidade que eu tenho de resolver, de mudar. Como eu permito que uma única pessoa possa ter tamanho impacto na minha vida, a ponto de tudo ser culpa dela? Trazer a responsabilidade para mim sobre o que acontece comigo me dá a possibilidade de transformar minha realidade, mudando a minha visão dos acontecimentos.

Foi na espiritualidade que essa relação tomou outro formato e me libertei de progredir essa culpa para minhas filhas. Hoje me recuso a tomar a culpa do que acontece com as meninas para mim. Especificamente com a Nina, minha filha de 4 anos, me recuso a acreditar que ela é assim ou assado porque é minha filha, ou seja, porque é culpa minha, porque eu não eduquei da maneira certa quando ela tinha menos idade, ou porque ela não usou chupeta, ou porque não come carne, ou por qualquer outro motivo, que todos os experts em maternidade e Freudianos que cruzam meu caminho tem para me dizer. Obviamente não estou me desresponsabilizando. Obviamente que ela me imita demais, que ela interpreta ações minhas e as repete da maneira dela. E que se eu não quiser que ela faça isso ou aquilo, que eu preciso refletir se não sou eu quem está dando esse exemplo, mas tudo isso sem culpa.

Mesmo tendo encontrado conforto na espiritualidade, nem preciso recorrer a lei do carma ou ao Caibalion ou qualquer outra imaterialidade para entender que ela sofre muitas influências além das minhas, aliás, muito mais influências dos outros do que de mim. Ela vai a escola o dia todo, ela fica com o pai, com a irmã, com os avós, ela passa as férias com as amiguinhas com uma avó postiça, ela visita outras pessoas. (Ela não assiste TV e nem mexe no celular, então esse tipo de influência ela não vai sofrer diretamente, pelo menos por enquanto).

Acreditar que alguém é responsável pelo rumo da sua vida, diante de tantas interações que ocorrem não faz sentido para mim. Maturana diz que todas as nossas células se autorregulam. O  conceito de autopoiese que ele criou é a capacidade de todo ser vivo (e ele chama de vida, a cognição) de se autorregular de escolher determinadas reações. A Nina como um ser vivo é capaz de adaptar-se consistentemente a cada interação que ela vive, independentemente da educação que nós oferecemos. Obviamente ela pode ser mais ou menos flexível, ou mais ou menos enquadrada naquilo que a sociedade gostaria de ver em uma criança, e que eu posso induzir determinados comportamentos de acordo com os estímulos, ou as condições. Mas isso não significa que são as condições que determinam os resultados do comportamento dela, se assim o fosse, acordaríamos com Lamarck. Não que a teoria da epigenética refute a influência do ambiente, mas é importante que haja a genética para alguns comportamentos surgirem e na espiritualidade, o carma.

Ainda, a culpa certamente produz um estado mental que interfere nas minhas escolhas e vai interferir na minha relação com elas. O mais doido nessa sociedade é que ao abrir mão da culpa, dá a sensação de que abri a mão da criança, que a deixei ao acaso, responsabilizando-se pelos seus próprios atos. Isso é uma grande confusão. Para libertar-me da culpa eu abri mão da minha expectativa. Eu vou fazer o melhor e dar as condições que considero dentro dos meus limites, o ideal. Agora, se elas no futuro, não agirem da forma como eu (ou a sociedade) acreditamos ser a melhor, isso definitivamente não é culpa minha. Se elas no futuro não forem o que a sociedade considera uma mulher de sucesso, isso não é culpa minha. E isso também não significa que eu não vou intervir quando achar necessário, mas o farei ‘sem culpa’. Minhas filhas não são meus projetos.

Elisa Carlos é mãe da Nina e da Gabi, yogini, especialista em inovação .

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