
Um dos lugares bíblicos estreitamente associados à ideia de ressureição, palavra-chave da Páscoa cristã, é Betânia, que fica na atual Cisjordânia, antiga Judeia. É vila pequena e dista seis quilômetros da Cidade Velha de Jerusalém. Milenar, antes mesmo do Tempo Comum a tradição já havia cunhado para ela outros três nomes, al-Eizariya, Azariyeh e Lazariyeh, cujas etimologias remetem para ‘colônia de leprosos’. Justifica-se: no alto da colina onde se assenta o povoado, ficavam apartadas as vítimas da doença contagiosa, estigmatizante e então incurável. Segundo o Novo Testamento, Jesus tinha muitos amigos na pequenina Betânia.
O turismo religioso, já a partir do século XIX, abriu portas a milhares de cristãos interessados em conhecê-la, pois havia se tornado marcante por alguns acontecimentos reveladores da vida de Cristo. Além de ter conquistado notoriedade por ser o lugar onde ele ressuscitou Lázaro, fez história ao sediar o interrogatório de João Batista pelos fariseus; acolher o Nazareno no retorno da Judeia; preparar sua entrada em Jerusalém no Domingo de Ramos. Foi também em Betânia que o Messias pernoitou quando retornava dos arredores e não poderia, pelas leis religiosas locais, continuar na estrada porque já seria sábado. Assim conta João:
‘Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde vivia Lázaro, que Ele tinha ressuscitado dos mortos. Simão, o Leproso, lhe ofereceu um jantar. Marta servia e Lázaro era um dos que estavam com Ele à mesa. Então Maria ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, e enxugou-os com os cabelos. A casa encheu-se com a fragrância do perfume.’
Essa mulher de nome Maria era irmã de Marta e Lázaro e as duas aparecem em episódio anterior citado por Lucas:
“Caminhando, Jesus e seus discípulos chegaram a Betânia, onde certa mulher chamada Marta o recebeu em sua casa. Maria, sua irmã, ficou sentada aos pés do Senhor, ouvindo-lhe a palavra. Marta, porém, estava ocupada com muito trabalho. E, aproximando-se dele, perguntou: "Senhor, não te importas que minha irmã tenha me deixado sozinha com o serviço? Dize-lhe que me ajude! " Respondeu o hóspede: "Marta! Marta! Você está preocupada e inquieta com muitas coisas; todavia apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada".
Esses dois episódios fogem ao estilo das parábolas que imortalizaram as mensagens de Cristo. Narrados em tom realista por dois evangelistas, podem ser definidos como relatos claros e expressivos que ganham força pela descrição sensorial do perfume, a dinâmica ansiosa do comportamento de Marta, a escuta atenta de Maria e a resposta pronta e surpreendente de Jesus a respeito de escolhas numa cultura judaica machista onde à mulher tudo era vetado, inclusive a ida à sinagoga. Ele legitima a opção de Maria ao reiterar a Marta que sua irmã tinha escolhido ‘a melhor parte’: deixar-se fertilizar pelo ouvido, abrir-se ao conhecimento, tomar consciência de si mesma e de novas realidades.
No enredo curto mas profundo transparece uma oposição de modos de existir: um voltado para o exterior, com atenção exagerada às demandas concretas do cotidiano; outro para o interior, valorizando o que fecunda, transforma e humaniza. É uma dicotomia que se arrasta há milênios e ganha contornos impactantes no nosso século, especialmente nítidos em certas ocasiões que devendo ser em essência espirituais se revelam apenas profanas.
Nesta Páscoa do ano 2025 o que mais vejo é gente preocupada com o chocolate, o ovo, os coelhos, o almoço, o bacalhau, o vinho, a louça, os cristais, o cardápio, os presentes, a roupa nova, a casa enfeitada, o jardim iluminado, o dinheiro no bolso, a aplicação na Bolsa. Pessoas até religiosas que não conseguem priorizar a essência da festa tida pelos cristãos como mais importante que o Natal por renovar a promessa de vida eterna, pilar-mor do Cristianismo. Ou aqueles que, à parte religiões, não alcançam o entendimento do que seja a vitória da Vida sobre a Morte. Há exceções. E controvérsias. Mas, em geral, na azáfama da barulhenta vida contemporânea orientada pelo consumo, pelas redes sociais, pelas compras on line, pela aparência antes de mais nada, parece que toda espiritualidade evapora, não deixa sequer rastros: onde os traços do perfume que é invisível mas traz em si uma essência, sua própria identidade?
Mas, apesar de tudo, sigo acreditando na Páscoa como oportunidade para refletir sobre renovação da vida, nos moldes como foi lembrada por Martin Luther King: ‘Nosso Senhor tem escrito não só em livros, mas em cada folha, em cada flor a promessa da ressurreição’. E à maneira de Fábio de Mello, também sinto que ‘o maior feito de Jesus não foi ressuscitar os mortos, mas é a capacidade de ressuscitar os vivos.’
De resto, sempre haverá Betânia, onde atendendo às súplicas das irmãs amorosas, Jesus ordenou ao cadáver há quatro dias dentro da tumba: ‘Lázaro, sai!’ E ele surgiu, ‘ainda todo envolto em panos e o rosto tapado com uma toalha, sendo desatado e convidado a tomar seu rumo’. É uma imagem forte, impactante, mas oportuna para que pensemos em viver a cada dia uma nova ressurreição, deixando morrer em definitivo o que ficou velho dentro de nós, esvaziando o sepulcro para construir outra morada onde habite um ser renovado, revigorado. Só assim poderemos nos dizer uns aos outros, de verdade: ‘Feliz Páscoa!’
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
Fale com o GCN/Sampi!
Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.