
O mês de março, que a tradição fixou como aquele em que mais se procura ressaltar o papel da mulher na sociedade, reconhecer as lutas travadas pela emancipação feminina, lembrar e reafirmar os direitos conquistados, terminou no Brasil com números cruéis. O cenário é de muitos recuos e isso não é apenas discurso feminista, conforme tendem a alegar homens machistas e mulheres negacionistas. Os algarismos falam por si e contra fatos não há argumentos.
Divulgado no último 25 de março pelo Ministério das Mulheres, que o produziu, o Relatório Anual é documento que exibe dados alarmantes. No ano passado, 1.450 brasileiras foram assassinadas pelo simples fato de serem mulheres. São doze a mais que no ano anterior, o que nos leva à conclusão de que nosso país teve em 2024 o maior número de feminicídios desde que o crime foi tipificado, há nove anos.
Outras 245 mil mulheres sofreram agressões de maridos, companheiros, namorados e ex-parceiros. 74 mil, parte delas meninas, denunciaram abuso sexual. Registraram-se 71.892 casos de estupro, o equivalente a 196 por dia. Para agravar a situação, nos casos de violência contra mulheres adultas (20 a 59 anos), 60,4% são pretas e pardas, enquanto 37,5% são brancas. Ser mulher e negra no Brasil significa correr muito mais riscos e estar num grau de vulnerabilidade bem maior em comparação com a mulher branca.
Os dados oficiais que deveriam envergonhar o país se tornam ainda mais perturbadores quando se sabe que milhares de outros casos não são registrados porque as vítimas sentem vergonha, medo ou ambos: muitas vezes dependem financeiramente de seus agressores e temem arriscar sua subsistência e a de seus filhos.
Torna-se nítido que apesar dos esforços das políticas públicas, de debates nacionais mediados por universidades, profissionais da saúde, imprensa, artistas e outros segmentos, do empenho, enfim, de parte da sociedade para mudar a situação, muitas mulheres continuam morrendo no Brasil de forma brutal e outras sofrem todos os dias abusos em sua integridade física, mental e psicológica. A violência tornou-se endêmica. Talvez porque suas causas sejam tão profundas como as que explicam o racismo: a base é estrutural, retrocede ao tipo de colonização que nos constituiu como nação, opondo sinhás a escravas mas mantendo ambas sob o controle férreo de homens forjados por educação patriarcal e cultura machista, pilares da discriminação que até hoje leva ao estado de coisas com que nos defrontamos.
É preciso lembrar que a violência começa muito antes de se encontrar um corpo nu e com marcas de tortura como o de Vitória Regina Sousa,17 anos, morta por um stalker ao voltar para sua casa em Cajamar, depois de um dia de trabalho duro como vendedora numa loja. Ou antes de uma câmera registrar os movimentos de Amanda Farias de Araújo, 27, atropelada e morta numa rua de Franca pelo marido que confessou o crime justificando-se com a alegação de que a vítima tinha um amante.
No seu extremo a violência está no assassinato que é quase sempre precedido por contextos de humilhação, abusos, discriminação. A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves (quem conhece?), perguntada sobre os números sinistros respondeu ao jornalista Joédson Alves, da Agência Brasil, que ‘a mobilização nacional é pelo feminicídio zero; precisamos de uma sociedade que não se cale, que não diga que isso é só responsabilidade do Estado. Prioritariamente é do Estado, mas é de toda a sociedade o papel de intervir, de orientar, de falar sobre’.
Faltou dizer que para combater o feminicídio e todo tipo de violência contra as mulheres é preciso educar desde muito cedo as crianças sobre igualdade de gênero, e no que tange especialmente aos meninos fazê-los compreender que há palavras que desvalorizam as meninas, olhares que as desmerecem, atitudes que as ridicularizam. E avaliações equivocadas que as diminuem, uma delas considerar que o valor está na aparência e não na capacidade intelectual, no conhecimento, na ética, na condição de se relacionar com outros seres humanos.
Por mais inacreditável que pareça, foi esse último comportamento o exibido pelo presidente da República ao empossar recentemente Gleisi Hoffman no cargo de ministra da Secretaria de Relações Institucionais. Fazendo questão de dizer que havia escolhido ‘uma mulher bonita’ para melhorar a articulação política do governo, Lula passou a ideia de que para ocupar espaço de poder uma mulher precisa possuir, além de condições de liderança, beleza física. Um conceito que soaria adequado na boca de Bolsonaro, diga-se de passagem.
A respeito deste fato, a senadora Mara Gabrilli publicou artigo no jornal ‘O Estado de São Paulo’ no último dia 30, sob título ‘Luto, indignação e retrocesso para as mulheres’, onde lembrou que ‘a fala do presidente não é apenas infeliz. Ela normaliza o machismo estrutural que nos silencia e, no extremo, nos mata. Que faz com que meninas sejam estupradas e responsabilizadas pela violência que sofreram. E faz com que mulheres assassinadas tenham sua honra questionada’. Mais adiante, referindo-se a casos de feminicídio e outras brutalidades de amplo conhecimento público, comentou: ‘É inadmissível que, diante desse cenário, Lula se cale sobre a violência contra as mulheres. Um presidente deveria se comprometer com o fim dessa violência. Deveria reafirmar a importância das mulheres em espaços de liderança pelo que pensam, fazem e transformam. Não pelo que aparentam.’
Os números acima registrados e oriundos de documento do próprio Ministério das Mulheres, as considerações de Mara Gabrilli e as diversas reflexões sobre o tema que vêm embasando artigos na mídia talvez expliquem por que o índice de desaprovação das brasileiras ao governo Lula superou pela primeira vez a aprovação na pesquisa publicada na quarta-feira pelo Instituto Quaest. O combo pesou.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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Comentários
1 Comentários
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Darsio 05/04/2025A violência contra as mulheres se explica pela preponderância do pensamento conservador. Está certa a senadora em criticar o presidente, mas ela enquanto senadora, o que fez para implementar projetos que garantissem maior presença das mulheres no Congresso? Foi uma crítica de fato ou apenas buscou tirar proveito político, como é de costume na nossa classe política? Perpetua a ideia de que a mulher foi feita por Deus para servir ao homem, a ele devendo total submissão. Assim está nas falas de líderes religiosos e, de muitos homens que se jugam exemplos dos valores da família, mas que vire e mexe pulam as janelas de suas casas e lá estão em um bordel. Compartilho da visão progressista de que a mulher deve ter total autonomia, usufruir dos mesmos direitos concedidos ao homem e, que jamais seja concebida como uma posse. Afinal, por que não haver uma lei que obrigue com que em todas as casas legislativas, tenha a metade dos cargos preenchidos por mulheres?