NOSSAS LETRAS

Precisamos falar sobre o Jamie

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 6 min
Divulgação/Netflix/Reprodução

Tomo emprestado para este comentário o título de um filme, ‘Precisamos Falar Sobre o Kevin’, de nacionalidade britânica, dirigido por Lynne Ramsay, estrelado por Tilda Swinton, baseado em livro homônimo de Lionel Shriver. Lançado em 2011, laureado com o Globo de Ouro, recebido na época com perplexidade pelo público, conta a história de Kevin, adolescente de classe média que se torna assassino. É o mesmo tema de ‘Adolescência’, série de quatro episódios que a Netflix disponibilizou neste março para assinantes e já se tornou a mais vista na história do canal de streaming. Jamie é o nome do protagonista. 

As similaridades entre o filme e a série podem ser percebidas na escolha do assunto, da faixa etária e do status social dos protagonistas, do tipo de crime que estes cometeram e o grande impacto de seus atos sobre as famílias. Diferença a registrar é que o primeiro foi inspirado na ficção; a segunda, na vida real, através de fatos encontrados pelo roteirista Stephen Graham na crônica policial britânica.

Muitos dos que viram a série estão usando as redes para comentar a estética dos planos-sequência que favorecem a proximidade do espectador com os personagens; mas, principalmente, para expor o impacto que o enredo desperta ao mostrar um menino inglês de treze anos que mata a facadas sua colega de classe da mesma idade.

Pais, avós, familiares, educadores, adultos preocupados vêm demonstrando necessidade de falar sobre Jamie Miller, sua família, seus amigos, interesses, escola, comunidade e, sobretudo, as motivações que o levaram a cometer o crime. Elas são várias, complexas e intrincadas: em nenhum dos quatro episódios encontram-se respostas claras e únicas porque o diretor não as desvela de forma objetiva, apenas mostra, e já de início, a situação traumática, instigando o observador a questionamentos que abrangem, além dos citados, as relações do garoto com o sexo oposto, seu modelo de masculinidade e sua saúde mental. Aos olhos dos que assistem, camadas de informações vão se adensando para fornecer pistas sobre o comportamento homicida do adolescente.

Ou, talvez fosse melhor dizer, o comportamento dos adolescentes neste período da história onde humanos estão vivendo revolução extraordinária, a digital, cujos efeitos são sentidos de forma impactante. Todo adolescente sofreu com inadequações, estranhamentos, inquietações, inseguranças- independente da época histórica em que esteve inserido. Mas parece que na contemporaneidade as dificuldades se diferenciam das enfrentadas pelos de outras gerações- a dos avós e dos pais, por exemplo. E até mesmo pelos nascidos nas últimas décadas do século passado e já eram adultos quando surgiu o smartphone em 2009, marco de transformações radicais no modo de viver.

‘A migração em massa da infância para o mundo virtual interrompeu o tipo de desenvolvimento social que vigorou por séculos e isso afetou o sistema neurológico dos humanos’, afirma o psicólogo inglês Jonathan Haid, autor do livro ‘A Geração Ansiosa’, lançado neste 2025 e já tornado best-seller no Reino Unido. Para Haid, a interrupção brusca de paradigma gerou ansiedade social, privação de sono, fragmentação da atenção, aparecimento de vícios, angústia e depressão nos adolescentes de nosso tempo. Na obra, o autor explora esses fenômenos crescentes e os atribui à transição radical de uma infância baseada em brincadeiras de rua, em clubes, com vizinhos, na escola, características do passado recente, para uma infância individualista, norteada por telefones, condenada ao afastamento físico no presente.

Antes do smartphone, crianças e adolescentes compreendiam o mundo através do contato físico, concordando ou discordando, desenvolvendo empatia, acolhendo e sendo acolhido, também sendo rejeitado e lidando com frustrações, mas com oportunidades de perceber as nuances do bem e do mal, de descobrir, interagir, exercitar sentimentos vitalizantes como o da amizade. O relacionamento on line mostrou-se muito diferente do presencial: o calor humano desaparece quando se buscam apenas clics de curtição.

A influência do mundo digital sobre a personalidade dos adolescentes é a maior marca de ‘Adolescência’ e se tornou um dos perturbadores elementos da série, impactando pais que reconheceram nas imagens de Jamie o perfil dos próprios filhos exilados em seus quartos, mergulhados nos celulares, surdos e mudos a vozes familiares responsáveis por interações imprescindíveis ao crescimento mental e psíquico. Vários também se reconheceram nos pais de Jamie, que erraram por ignorância e não por negligência, ao desconsiderarem riscos para o filho que permanecia ‘dentro de sua casa’, ao não considerarem que as telas são portais para a entrada em outros espaços que não físicos, algumas vezes situados a anos-luz de distância do ambiente familiar, onde vozes anônimas ou afamadas promovem discursos de intolerância, ódio e misoginia, como os que afetaram Jamie.

Óbvio que não se deve demonizar o celular, máquina já integrada no cotidiano. Mas é preciso estar atento para que os recém-saídos da infância não tenham a saúde mental comprometida por ele. De maneira geral, adolescentes vivem em outro mundo que os pais não podem apenas orbitar. Precisam entrar nele, frequentar as redes, conhecer os símbolos, o   léxico, a sintaxe desse lugar onde ‘um coração roxo’ não significa ‘muito amor’, como acreditava o policial que prende o menino e investiga o crime; nem o termo ‘incel’, palavra-chave do bullying sofrido por Jamie, diz respeito apenas ‘à tecnologia de tela LCD que torna os displays mais finos e integrados’, conforme explicam os técnicos. Com sua potência avassaladora, o neologismo que na série só os iniciados conhecem é abreviação de "involuntary celibate" (celibatário involuntário) e se refere a homens incapazes de experiências sexuais, apesar do desejo de tê-las. É o que fica sabendo a psicóloga que entrevista Jamie na prisão.

Entretanto, conseguir adentrar o mundo do adolescente sem parecer invasivo, invasiva, e aprender esse ‘código morse’ que é a linguagem deles, não bastará se não houver esforço por comunicação verdadeira da parte de quem cuida. O vínculo cultivado com conversa, compreensão e empatia genuínas é o que pode salvar um adolescente de muitas tragédias. Sempre é bom lembrar que a tarefa dos pais não termina quando o filho deixa as fraldas e vai para a escola: ela não cessa porque educar é processo contínuo, trabalhoso, exigente.

Precisamos falar sobre Jamie para entender o que está acontecendo com nossos adolescentes e conosco enquanto sociedade. A arte pode favorecer a discussão, como tem feito ‘Adolescência’, através de tema de importância crucial, enredo bem construído, técnica envolvente e atores magníficos. ‘A arte pode ajudar a reduzir o abismo causado pela falta de habilidade da sociedade adulta para entender em que planeta os adolescentes vivem, seja emocionalmente ou digitalmente- ou os dois ao mesmo tempo’- escreveu a jornalista Renata Cafardo em recente artigo para o Estadão.  E concluiu: ‘Não é só quem tem filhos nessa idade, todos somos responsáveis por essa adolescência, pelos desafios do presente e pelo futuro que essa geração vai construir’. Alguém discorda?

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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