
Por razões óbvias, que incluem distância geográfica, histórica e cultural, no Brasil conhecemos bem pouco da literatura japonesa, que cobre um período de quase dois milênios. Dela temos alguma noção pelos haicais, adaptados ao português por alguns de nossos poetas; e pelos romances contemporâneos que nos chegam em geral traduzidos do inglês. É uma pena, porque ela é riquíssima e revela pelo olhar de seus autores uma visão do mundo e dos seres humanos que em geral surpreende e enriquece a nós, ocidentais.
As primeiras obras dessa literatura foram diretamente influenciadas pela China, de onde o Japão importou os kanji, elementos essenciais à criação do sistema de escrita japonês. Mas ainda que antes disso não existisse literatura escrita, um número considerável de baladas, orações, rituais, mitos e lendas foi composto para expressões orais. Posteriormente, a partir dos anos 800 de Era Comum, as composições ganharam a forma grafada. Neste período, chamado clássico ou Heian, as artes, e especialmente a literatura, viveram momento de ouro. Os imperadores apoiavam os poetas, em sua maioria cortesãos. Refletindo a atmosfera aristocrática, produziam uma poesia elegante e sofisticada que exprimia emoções de forma retórica.
É nesse contexto que vive e escreve Sugawara no Michizane, que além de poeta foi político influente, professor considerado e estudioso das letras. Até hoje seu nome é reverenciado na cultura nipônica, nomeando santuário chamado Daizafu, próximo de Kyoto. Ali, um grande bosque formado por ameixeiras acolhe milhares de turistas no verão, bem como estudantes locais que buscam a proteção do mestre para iluminá-los nos vestibulares disputadíssimos.
Michizane possuía talento excepcional para a poesia, tanto a waka quanto a kanji. Em japonês waka significa ‘poema’ e é uma forma tão básica para a literatura japonesa que se mantém até hoje. Seu aspecto formal mais proeminente é a curta estrutura composta geralmente de 31 sílabas divididas, respectivamente, em 5 versos de 5, 7, 5, 7 e 7 sílabas cada. Para erguer-se como forma poética, o waka emprega recurso rítmico e retórica peculiar que vinculam cada poema individual ao todo da tradição. E kanji, como se registrou acima, são caracteres pictóricos de origem chinesa usados na língua japonesa; na literatura empregado especialmente para designar substantivos, radicais de adjetivos, verbos, ideias concretas e abstratas.
Diz-se que Michizane começou a compor waka e kanji aos cinco anos e nunca mais parou. A produção enorme permanece conhecida só em parte no país do Sol nascente. Os temas contemplam sentimentos humanos e miram com amor e delicadeza o reino vegetal. Um de seus mais conhecidos poemas diz assim: “Na jornada/ Não tenho serpentinas de seda para oferecer/ Deuses, se vos apraz/ que possa levar em vez de um lindo brocado/ as cores do outono no Monte Tamure”.
Também lírico, mas com um pé na história, é outro poema escrito pouco anos antes da morte do autor, exilado em Daizafu por conta de intrincadas razões políticas e palacianas. Tendo sentido profunda tristeza por ter de deixar Kyoto e não poder mais conversar com a ameixeira que seu pai havia plantado no quintal de casa por ocasião de seu nascimento, ele escreveu: ‘Quando o vento leste soprar/ e você florescer plenamente/ Ah, as flores de ameixa!/ Mesmo que você perca seu mestre/ Não fique alheia à primavera.” Era um ser de muita generosidade, desvela o último verso.
Aqui entra a razão do título dessa crônica. Relato recontado há séculos registra que a ameixeira gostava tanto de seu mestre que sentindo demasiada saudade dele voou de Kyoto para Dazaifu e se enraizou na frente da casa onde ele morava, tornando-se conhecida do povo como tobi-ume ('ameixeira voadora'). Entretanto, narrativa mais realista diz que um amigo de Michizane levou a muda de Kyoto para Dazaifu assim que foi publicado o decreto do banimento. Mas, como escreveu alguém, diante da dúvida entre o factual a lenda, registre-se a segunda se ela for mais bonita. Aqui não faz muita diferença se a árvore que voou ou foi transplantada: afinal, ela deu origem a um parque, inspirou a criação de um templo xintoísta, fixou a notícia do exílio, impediu que a obra do escritor caísse em outro tipo de ostracismo- o esquecimento.
Nutro simpatia por quem ama árvores; e por escritores, especialmente poetas, que conversam com elas naquela linguagem que tem código singular. Sábado passado, tendo assistido a um vídeo que contava a história de Michizane, fiquei tão impressionada que a levei mentalmente comigo ao lançamento do livro ‘Antônio Domiciano- carteiro e poeta’, de Luiz Cruz de Oliveira, acontecido no Teatro Judas Iscariotes. Depois do lindo espetáculo de apresentação da obra, estava na fila para pegar meu autógrafo com o Cruz e o Domiciano quando a Márcia de Oliveira, da editora Ribeirão Gráfica, me chamou e apresentou a uma leitora que contou algo verazmente emocionante. Era a Carolina, a Carol, acompanhada pelo marido, o Bento. Disse ela que no lançamento de meu livro “Uma bolsa grená’, há 25 anos, recebeu como outros que ali então se encontravam pequena semente dentro de envelope. Tendo lido o livro e gostado da crônica ‘Sementes’, incluída no volume, plantou a semente recebida, que germinou forte e com o passar do tempo se transformou numa frondosa ‘saboneteira’, nome popular da espécie nativa batizada pelos botânicos como ‘Sapindus Saponaria’. Fui informada também de que já faz muito tempo que ela vem sombreando, produzindo frutos, atraindo pássaros.
Qualquer dia desses quero ir conhecê-la e falar com ela, como o poeta japonês com sua ameixeira. Dizer-lhe, por exemplo, das pequenas surpresas que ocorrem a quem ama ler e escrever; da alegria que é receber bons retornos; da certeza que tenho de serem os livros sementes que às vezes demoram mas germinam, tudo depende do solo e de outras circunstâncias. Também desejo lhe falar alguma coisa sobre a instigante expressão japonesa ‘Ichigo Ichie’, que pode ser traduzida literalmente por ‘uma vez, um encontro’ e cujo significado expande-se para diferentes situações da vida. Cada encontro é um tesouro único, que jamais voltará a se repetir da mesma forma. Se eu não tivesse ido ao lançamento, se houvesse saído minutos antes, se não esperasse pelo andar da fila, se... Não teria encontrado Carol e Bento, não saberia sobre a semente plantada, a árvore abençoada, o livro lido. Não teria conhecido duas pessoas encantadoras.
Há encontros que não sendo marcados em agendas, o são por mãos invisíveis e acontecem no cruzamento preciso de tempo e lugar. Alguns chamam a isso coincidência. Eu acho que são um pequeno milagre do cotidiano.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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