CONTO

Ata do conselho pós avaliação do mérito

Por Baltazar Gonçalves | especial para o GCN
| Tempo de leitura: 5 min

Ata de conselho pode ser leitura obrigatória para os que nele tiverem voz, desaconselhável enfadonha para os demais alheios ao tema, se entretenimento é só o que se busca na leitura melhor voltar ao barulho do silêncio que precede as palavras dessa introdução. Eis o caso, narrarei o ocorrido nesse conselho, idêntico tanto na forma e no conteúdo aos demais registrados à exaustão, mas aqui bem documentado a partir do título a que se faz referência, por ter vindo à público o teor dramático das conversações na reunião da escola penhoradas.

O acaso fez comparecer na sala de reuniões da escola a mãe de um aluno interessada na situação de aprendizagem do filho. Chegou cedo e foi confundida por outra, uma professora recém-contratada que assumiria o cargo hoje ou amanhã. A mãe é filha de Maria na congregação Filhos de Maria; a outra, especialista. Do filho aluno-julgado não importa mencionarmos o nome já que não estivera presente, mas o diagnóstico atestado por oftalmologistas renomados de uma disfunção óptica que o impossibilita, desde sempre, distinguir cores e ver tudo em branco preto e tons de cinza. Quando a nova professora assumir seu cargo, cadeira ou cátedra para sermos menos vulgar na escolha do vocabulário, léxico deixado no aterro para que o cálculo do prejuízo fizesse maior diferença, a mãe, literalmente transfigurada, terá noticiado o conjunto de adjetivos com os quais seu filho fora desqualificado pelos profissionais da educação como se fosse um animal. Logo, publicações nas redes sociais noticiariam o escândalo que saltaria para as primeiras páginas dos jornais impressos e telejornais na televisão aberta.

Contudo e só após o intervalo de uma semana aos depoimentos, depoimento no plural porque todos foram ouvidos, é que a demissão coletiva se tornou-se? veredicto inédito para a pasta do governo dando oportunidade ao ministério se pronunciar pela justa causa das demissões e declarando, a seu tempo, o constrangimento geral no pedido de desculpas feito pelo porta voz engravatado. Quanto aos professores implicados no caso, a lembrança da mãe, falsa professora na ocasião, suscitaria diálogos inócuos pelo atraso da perspectiva, palavrões que não serão registrados aqui. Objetividade e clareza, objetividade e clareza, repete enquanto transcreve o dito em feito o escrito desse relator que teve a presença de espírito de nada anotar além da veracidade dos fatos e, assim, repetimos, segue a ata desse conselho atropelando regras e gênero a ponto de quase serem omitidos o dia, o mês e o ano do ocorrido, 30 de janeiro de dois mil e vinte e cinco, sempre haverá tempo de remendar nas fontes os fatos, só não é possível ordenar um por um a chegada dos professores no momento em que disseram “estou para o conselho”, pois que repetir estou para o conselho consoante o número de profissionais que ali estiveram acabaria por encobrir falta onde supúnhamos excesso, lengalenga ensinado naquela fábula antiga em que as ciências se reuniam em concílio para resolver grande dilema, trama simples reforçando no final, que é onde se reproduz a moral dos costumes, a razão só não ilumina as trevas quando por hábito ignoram a irmã mais velha, e aí está, a sabedoria popular veio com a mãe para ouvir.

Em seus postos o diretor e a coordenadora pedagógica, ele sentado à mesa maior seria o responsável pela direção dos quem não a tem; ela, de fazer como queria Paulo Freire o trânsito entre as classes fluir. Em tempo, é preciso descrever o ambiente uma vez que o cabeçalho fora compilado e os protagonistas da cena foram apresentados. À primeira vista, que é o olhar da mãe da criança que não enxerga colorido, o que desperta nossa atenção é a disposição das carteiras acompanhando as paredes e viradas para o centro da sala sugerindo uma figura que segundo os manuais de como organizar um conselho deve ser um círculo. A sabedoria popular se manifesta apenas uma vez só, e quase podemos ouvi-la perguntando “aquilo são instrumentos cirúrgicos?” quando se percebe a ironia de apresentar os ferramentas de trabalho dos professores dispostos igualmente sobre todas as mesas na mesma ordem: borracha, lápis preto, caneta vermelha, caneta azul, caneta preta, régua de quinze centímetros e caixa de giz. Da porta por onde entramos se veem as vidraças abertas, a brisa da manhã faz balançar o algodão alvejado das cortinas brancas. A sabedoria popular já não está para ouvir a voz do secretário que agora soa firme e rápida como a do comentarista de futebol anunciando o início da partida com nomes e números, e entre uma coisa e outra, porque número não tem rosto, uma pausa menor que essa vírgula, e ouvimos o coro concordar APROVADO, vez ou outra, REPROVADO: comentários, justificativas, lamúria, ladainha em palavras impróprias.

Nada de novo nesse conselho que segue em bom ritmo, na mesma cadência dos opostos complementares, até que o nome do nosso personagem seja a bola da vez por assim dizer. Então o chão se abre sob os pés da Filha de Maria tomada pela professora substituta e uma dor lancinante aperta suas entranhas, o vômito não lhe escapa à boca e se confunde nojento e ácido à sentença REPROVADO. Calada, a mãe ouve a voz do conselho: HOMOLOGADO. O conselho homologa, o conselho homologa. O ânimo do conselho é a insólita certeza, e com ela a paz ao espírito, de terem chegado ao consenso a que deram o infeliz nome de mesmalinguagem. Triste figura, moinho e vento. Não devia dizer aqui sob pena de perder o emprego, esse Projeto de Escola de Período ou PEI no estado de São Paulo serve de instrumento de poder, coação e pressão psicológica ou constrangimento utilizando de meios materiais como o salário dos professores restringindo sua liberdade, síndrome do pequeno poder esmigalhado por Michel Foucault. O retrato de Anísio Teixeira só não cai da parede porque está bem pregado como Cristo na cruz.

A essa altura chega o texto dessa ata a bom termo e, não depois de subscrever meu nome, ouvimos a mãe que enfim se pronuncia em defesa do filho para os presentes dessa incômoda leitura: a puta que vocês não querem nem pintada de ouro sou eu.

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