
Terra de Molière, Voltaire, Victor Hugo, Stendhal, Balzac, Flaubert, Proust, Mauriac, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Marguerite Yourcenar e tantos outros e outras notáveis, a França continua oferecendo ao mundo uma plêiade de escritores de primeiro nível. Só nesse nosso século cujo primeiro quartel estamos concluindo, o país das luzes, da liberdade e dos protestos (o que dizer da palavra ‘greve’ que nasceu na Place des Grèves?) já se distinguiu na literatura por três nomes contemplados com o reluzente Nobel: Le Clézio, em 2008; Mondiano, em 2014; Annie Ernaux, em 2022. A última, autora entre outros do romance ‘Um Lugar ao Sol’ seguido de ‘Uma Mulher’, que comento aqui, destaca-se entre os 117 premiados na história do Nobel como a 17° mulher a conquistar a láurea.
Annie Ernaux nasceu em 1940 em Lillebonne, estudou na Universidade de Rouen e foi professora de literatura no Centre National d’Enseignement par Correspondance durante mais de 30 anos. Com livros considerados ‘clássicos modernos’ em seu país, em 2017 ela recebeu o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da obra, constituída por vinte livros. Seu primeiro trabalho, ‘Les armoires vides’ (sem tradução no Brasil), foi publicado em 1974, mas ela só se tornou conhecida na Europa a partir de 2008 com ‘Les années’ (Gallimard), editado em 2021 no Brasil com o título ‘Os anos’. A temática deste romance será retomada em outros títulos. Obras autobiográficas, escritas em primeira pessoa, nelas a escritora reconta episódios de sua vida entrelaçados com momentos históricos do final do século XX e começo do XXI.
Para Claudia Consuelo Amigo Pino, pesquisadora da UFF e estudiosa da obra da francesa, ‘a autora mobiliza questões ligadas à própria trajetória de vida, à ficção e às ‘escritas de si’ e trabalha com as fronteiras móveis entre esses gêneros. Diferentemente das autobiografias clássicas, que surgiram no século XIX na França e por meio das quais escritores narram sua própria trajetória, Ernaux recorta sua existência em pequenos acontecimentos recusando-se a afirmar que sua literatura é autoficção, classificando-a como autobiográfica, já que não inventa nem efabula com a própria realidade, buscando com afinco aproximar-se da verdade, não elidindo temas controversos’. Sua obra pode ser chamada de feminista ao colocar em cena impasses vividos na contemporaneidade pelas mulheres, especialmente os relacionados ao corpo, à sexualidade e às questões sociais.
Ao conceder à escritora o Nobel, a Academia registrou que o fazia “pela coragem e acuidade clínica com a qual a escritora revela as raízes, os estranhamentos e as limitações da memória pessoal (...) Em sua escrita, consistentemente e por ângulos diferentes, ela examina uma vida marcada por fortes desigualdades em relação a gênero, linguagem e classe. Seu caminho para se tornar escritora foi longo e árduo.” Como resposta, Ernaux comentou ter consciência de que ‘é grande responsabilidade testemunhar, não necessariamente em termos de minha escrita, mas testemunhar com precisão e justiça em relação ao mundo.’ É isso que ela faz ao contar com jeito singular sua existência, fatos relevantes e o mundo onde tudo acontece.
No livro aqui citado, como autora-narradora ela protagoniza duas histórias. A primeira, ‘Um Lugar ao Sol’, é sobre o pai, foi publicada em 1984 e conquistou um prêmio prestigiado, o Renaudot. A segunda, ‘Uma Mulher’, saiu quatro anos depois e é sobre a mãe. São dois relatos reunidos agora em único livro de 145 páginas que não é fácil definir no que diz respeito ao gênero literário. A própria escritora diz dele que ‘não é uma biografia, nem um romance, naturalmente, talvez, algo entre a literatura, a sociologia e a história.
Por certo, e o leitor logo perceberá, é que se trata de narrativa sobre perdas, onde se evidencia a ambivalência dos sentimentos que unem uma filha a seus pais e o impacto doloroso da quebra desse elo. ‘Parece-me que agora escrevo sobre a minha mãe para, por minha vez, a trazer ao mundo’, escreve a filha sobre aquela que é “a única mulher que contou verdadeiramente”, a despeito de a relação ter sido tumultuada. Sobre o pai, continuamente engolfado pelo medo e vergonha de estar num lugar que o constrange, ela confessa: ‘Eu talvez escreva porque não tínhamos nada para dizer um ao outro’.
O livro traz à tona simultaneamente a diferença de classes sociais na França dos anos 70 e o que isso teve a ver com a vida familiar da narradora, que mostra como a dinâmica das relações entre pais e filha é afetada pelo desejo de ascensão dos três. O tom é autobiográfico e ao longo da rememoração torna-se nítido o estranhamento da narradora em pertencer a uma classe e estar destinada a outra pelo pai, operário que a custo se torna pequeno comerciante, e pela mãe, trabalhadora de modos rudes. No final do livro, ela escreve: ‘Impunha-se que a minha mãe, nascida num meio opressivo de que quis sair, se tornasse história, para que eu me sentisse menos só e artificial no mundo dominador das palavras e das ideias em que, segundo seu desejo, eu vivi.’
É ao ingressar na carreira acadêmica que a jovem Annie passa a frequentar outros espaços, casa-se com homem de posição social bem acima da sua, torna-se enfim uma mulher burguesa. Mas os movimentos exigidos por essa ascensão minam aos poucos seu relacionamento com os pais. Seria história até banal, já lida em outras biografias, tratando de modo simultâneo um indivíduo em sua família e essa em sua época, não fosse a escrita muito peculiar da autora: objetiva, enxuta, direta, sem imagens, sem lirismo, econômica, minimalista e, entretanto, capaz de traduzir aspectos de peculiar afetividade e de dar conta de mostrar que humanos normalmente buscam seu lugar no mundo.
O sucesso e o alcance da obra de Annie Ernaux desde que começou a publicar tem levado analistas a levantar a hipótese de que a escritora tenha tido alguma premonição sobre os rumos que tomaria a literatura com o advento de novas mídias e interesses. Todos os seus livros são curtos. ‘O Jovem’, publicado depois do Nobel, tem 90 páginas e o volume cabe no bolso de uma camisa.
PS- A edição de que fiz uso é da ‘Livros do Brasil’, que apesar do nome é editora portuguesa. A tradução do francês é de Eduardo Saló. O livro pode ser adquirido na Amazon.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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