NOSSAS LETRAS

Kafka, atemporal

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min

“Na noite de 23 de outubro de 1902, o jovem Franz Kafka, que começava o segundo ano da faculdade em Praga, assiste à palestra proferida por aluno também frequentador do centro de leitura e escrita da universidade. No decorrer da exposição, o palestrante contrasta as ideias de dois grandes pensadores alemães do século XIX, Arthur Schopenhauer, que idolatrava, e Friedrich Nietzsche, a quem classificava de uma fraude. Era Max Brod que se atrevia a falar desta forma e Franz, um nietzschiano convicto, após a conferência o aborda e critica duramente. Os dois discutem no caminho de volta para suas casas e acabam por descobrir grandes afinidades.” 

O parágrafo com que abro este comentário ao livro “Kafka e a Marca do Corvo”, da escritora (brasileira) Jeanette Rozsas, ilustra a escrita fluida e objetiva com a qual ela constrói o romance biográfico lançado em 2022 pela Editora Melhoramentos, com apresentação arguta do ficcionista e crítico de arte Nelson de Oliveira. Da autora foram exigidos três anos de pesquisas em bibliotecas, viagens a Praga, Berlim e adjacências, buscas nos lugares frequentados pelo escritor, e, claro, mergulho profundo em toda a obra (romances, contos, fragmentos, diários, aforismos) de um dos mais estranhos escritores de todos os tempos.

Sua importância é tão expressiva que mesmo quem nunca tenha lido Kafka conhecerá o sentido do adjetivo “kafkiano”, relativo a contexto de onde emergem culpas e acusações infundadas; instituições invisíveis que rastreiam e perseguem humanos; consciência do absurdo que é tentar encontrar sentido em acontecimentos totalmente incompreensíveis; ideia de que a vida parece algumas vezes um pesadelo. As histórias saídas de sua mente criativa até hoje assombram ao mostrar seres impotentes para vencer a organização social. Eles não conseguem alçar voos, permanecem na superfície das coisas e dos fatos, são meros espectadores do alucinado curso da vida. Desamparados, lembram robôs- um conceito que no começo do século XX apenas se ensaiava. São por fim absorvidos pelo processo de organização cega e mecânica ao qual hoje chamamos de ‘sistema’.

 O mais conhecido representante da galeria de personagens de Kafka é Gregor Samsa, de “A Metamorfose”, que “certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Outros apareceriam em “O Processo”, como Joseph K., “detido sem ter feito mal algum”; em “O Veredito”, como Georg Bedermann, exímio nadador condenado à morte por afogamento; como K. em ”O Castelo”, viajante que embora tente nunca chega a seu destino. Há outros excêntricos, como a cantora Josephina na antologia “O artista da fome”, e todos os que povoam a distópica “Colônia Penal”.  Tais narrativas foram escritas entre 1912 e 1924- ano em que morre Kafka aos 41 anos. A publicação póstuma dos títulos só aconteceu graças a um esforço extraordinário de Max Brod, que viveu até 1968. 

É óbvio que os livros de Kafka não pertencem ao gênero entretenimento. Impactam pelo surreal, o non sense, o absurdo, a bizarrice, o estranhamento, a alienação. São difíceis e sombrios, mas necessários. Não é por acaso que ele escreve num dos seus muitos “Diários”: “Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos entristeçam profundamente, como a morte de alguém a quem tenhamos amado mais que a nós mesmos, como se banido para florestas isoladas de todos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar enregelado que temos dentro de nós.”

Boa parte do que nos mostra Jeanette Rozsas foi extraída desses “Diários” que Kafka começou a redigir em 1910 e neles prosseguiu até o fim de sua existência. Em centenas de páginas ele registra percepções peculiares sobre Praga, sua terra natal, regida pela égide de três culturas convergentes -a tcheca, a alemã e a judaica. Comenta as manifestações intelectuais do período, cujas características mais notáveis incluíam a valoração da metafísica e a inclinação para a música, a fantasia e o sonho. Traduz seu desagrado diante da impossibilidade de conciliar as obrigações do emprego burocrático e o desejo de se dedicar integralmente à escrita. Desvela o influxo da tradição religiosa hebraica, sua opção pelo sionismo, a manifesta vontade de mudar-se para a Palestina, plano frustrado em razão dos primeiros sintomas da tuberculose. Reitera seus desgostos com o pai, comerciante incapaz de reconhecer o valor da literatura ou de qualquer arte. Descreve a mãe submissa e frágil e as três irmãs de perfis diferentes. Questiona o tipo de afeto que o ligava a mulheres de quem se aproximava para logo abandonar, sem nunca ter se casado. Demonstra gratidão ao apoio dos melhores amigos: o médico Robert Klopstock, a última namorada, Dora Dymant, o editor e escritor Max Brod. Os três estarão ao seu lado até o fim no sanatório Hoffmann, em Kierling, na Áustria, em 3 de junho de 1924.

“Kafka e a marca do corvo” oferece ao leitor o conforto da linearidade, mas usa muitas vezes o artifício da intertextualidade, recurso que aproxima mais os que conhecem a obra do escritor tcheco. São sete capítulos em 190 páginas que se leem com a satisfação que nos causam os relatos bem contados, pois o essencial foi colhido pela biógrafa. Tanto nos ”Diários” como nos romances, anotações aforísticas e registros esparsos; tanto nos percursos urbanos como nos diferentes  sanatórios onde o artista esteve internado;  tanto na árvore genealógica de judeus e não-judeus como na dicotomia entre os idiomas tcheco e  alemão; tanto no modo da vida familiar que começava a se modificar como na ética do trabalho que impunha um novo estilo de vida,  Jeanette Rozsas buscou matéria viva para compor a história triste e bela, única e irrepetível, potente e atemporal de um escritor que até hoje desafia leitores, escritores, analistas e críticos como Marcelo Backes, autor de prefácio lúcido e importante para a obra  literária que é “Carta ao Pai”, que  começa com o seguinte parágrafo:

 “Querido pai. Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento.”

A carta devastadora (que o pai não leu) e as condições em que foi escrita parecem ter sido a bússola pela qual Jeanette se guiou na construção da biografia, a ponto de nos sugerir de forma sutil que Franz Kafka teria tido destino diferente caso fosse filho de pai menos cruel, arrogante, exigente, autoritário e destituído de empatia pelo filho. Nos últimos meses de vida o escritor pediu a Max Brod que destruísse toda a sua obra, em mais uma de suas recorrentes demonstrações de baixa autoestima e insegurança quanto ao que havia grandiosamente criado. Não se dava conta da sua magnífica condição de “dar voz à penosa condição humana num mundo que começava a se esfacelar”, como afirma com precisão a autora da biografia. Felizmente a morte o colheu antes dos horrores a que estaria, sem dúvida, sujeito nos campos de concentração, onde morreram suas irmãs, sobrinhos, cunhados e muitos dos seus amigos. “O campo de concentração foi a materialização do pesadelo kafkiano”, explica Jeanette Rozsas, cuja biografia é precioso acréscimo aos leitores e um convite aos que ainda não o leram. Especialmente porque sua obra mais do que nunca parece profética ao anunciar, e denunciar, o abandono, o sofrimento, o espanto diante do inexplicável, do tenebroso, do absurdamente sem sentido.

Kafka é atemporal e nos ajuda a pensar a humanidade no momento histórico que vivemos, onde a falta de argumentos não permite construir debates (como os que ele mantinha com Max Brod) e interlocutores se armam de olhares inquisidores e julgamentos prévios (como em “Veredito”) antes mesmo de lançada a primeira frase. Parece que nesse nosso século tenebroso a maior violência está na linguagem pois a palavra que deveria nomear tornou-se a palavra que mente de forma deliberada e despudorada. Que ilustrem isso as fake news.

Post Scriptum: em tcheco, a palavra “kafka” significa “corvo”. Mas Kafka escreveu em alemão.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.  

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