NOSSAS LETRAS

Dilúvios

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

“_O rio já encheu mais?- perguntou ela.

_Chi, tá um mar d’água! Qué vê, espia,- e (o menino) apontou com o dedo pra fora do rancho.

A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água (...) Voltou para dentro (...) No canto escuro do quarto o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e afuxicado.

_Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu?- pediu ela ao filho (pai da criança). Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundíce entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não (...)”

O trecho faz parte do conto “Nhola dos Anjos e a Cheia do Corumbá”, do ficcionista Bernardo Élis (1915/1997), escolhido por Ítalo Moriconi para integrar a coletânea “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”, publicado no ano 2000. 

Fui reler este conto de temas atemporais, tão logo as primeiras imagens da catástrofe no Rio Grande do Sul começaram a ser mostradas pela televisão. Resgatando a observação da protagonista diante do roldão das águas, repeti mentalmente sua palavra para descrever o desastre: dilúvio.

Na tradição hebraica este foi um castigo imposto por Deus aos humanos que andavam vivendo de um jeito reprovável. É o que diz a Bíblia, em quatro capítulos do livro Genesis. Mas epopeias também milenares, de diferentes latitudes, inscritas em suportes como pedras ou papiros, registraram dilúvios. Aqui mesmo, na América do Sul, espanhóis recolheram de maias e incas, e portugueses ouviram de tupinambás, relatos similares. Civilizados ou primitivos, humanos em diversas épocas e lugares temeram com razão o violento poder das águas quando desmedidas. Aliás, continuam temendo.

Brasileiros, tivemos nossos dias de horror diante da incontinência das águas no Rio Grande do Sul. É bem provável que muitos tenham resgatado das histórias religiosas ou das narrativas profanas o mito das águas que “crescem para fora” (como se define etimologicamente a palavra “dilúvio” no latim) e ultrapassam todos os limites. As águas engoliram pessoas, animais; casas, ruas, avenidas, estradas; aeroportos, indústrias, silos, plantações; supermercados, restaurantes, hotéis; bibliotecas, teatros, museus.  Arrancaram de seus lares milhares de adultos e crianças levados a abrigos improvisados. Deixaram saldo de mortos, feridos, desaparecidos, desamparados. E agora, baixadas, o que se tem pela frente- além da lama que inviabilizou 90% dos municípios e dos ratos que podem causar doenças- é o processo de reconstrução, e não de restauro, que demandará dinheiro, tempo, criatividade e disposição.

“Pelo menos para alguma coisa serve o infortúnio”, diz um ditado no idioma francês. No nosso caso, a catástrofe mostrou uma faceta dos brasileiros que parecia encoberta nos últimos tempos: a fraternidade. Corrente humana se formou rapidamente diante da necessidade de fazer alguma coisa. Mesmo alguns dos que perderam tudo viraram voluntários e foram para a frente de salvamento. Brigadistas agiram dia e noite para retirar pessoas de lugares perigosos ou tentar convencê-las a deixar as regiões atingidas. E, sim, junto à sociedade civil, moveram-se as administrações federal, estadual e municipal. Também fez bem o seu trabalho a imprensa, mostrando ao vivo para o País e o mundo o que acontecia - algo até então impensável, inacreditável.

Entretanto, se a pior catástrofe socioambiental da história do Estado gaúcho revelou a capacidade de mobilização, união e fraternidade da maioria dos gaúchos, e de brasileiros de todos os cantos, mostrou também que esta foi uma tragédia anunciada. Há quase dez anos, o senador Pedro Simon, da tribuna do Senado, abordou os reiterados desastres naturais do seu Estado e demonstrou sua preocupação diante do fato de que o RS liderava então o ranking desses desastres no País. Há apenas uma década este político que é dos raros cuja idoneidade não sofreu arranhão ao longo de sua existência de 93 anos, alertava “para as peculiares características climáticas rio-grandenses; sua complexa bacia hidrográfica; o drama cíclico das inundações e vendavais; a ação necessária de alocação, em curto prazo, de famílias atingidas pelas intempéries; a necessidade de amenizar os prejuízos financeiros e emocionais da população.” Foi profético, mas seu alerta recaiu no vazio, porque no Brasil não temos a cultura da prevenção. Só colocamos tranca na porta depois que ela foi arrombada.

Ainda mantendo em mente as imagens trágicas dos últimos dias, que levaram muitos à reflexão, se não sobre o mito ao menos sobre a metáfora do dilúvio, poderíamos fazer uma consideração a respeito de castigo – que no caso não vem de Deus, mas de nossos próprios atos. O aquecimento global mudou o clima e fenômenos meteorológicos estão atingindo o planeta. Humanos de todas as latitudes não cuidamos dele conforme seria necessário. Do micro ao macro, sobram exemplos de descaso. A conta vem. A propósito, nunca é demais lembrar o que disse Einstein: “A natureza quando agredida não se defende, ela se vinga”.

Para escapar do dilúvio bíblico, muito anunciado e pouco considerado, Noé, que acreditou nos avisos, construiu sua Arca, embarcação de grandes proporções, feita de cipreste e revestida de piche, com três andares e capacidade para levar sua família, setenta pares de animais e muita carga. Assim se salvaram todos e repovoaram a Terra a partir do monte Ararat.

Precisamos aqui e agora mais que de uma Arca e de um Ararat. Necessitamos de uma nova atitude em relação ao que seja reconstrução, porque as cidades destruídas deverão ser reerguidas a partir de um novo modelo com base na prevenção, já que outras inundações virão. Estamos vivendo o chamado “novo normal do clima.” Urge um olhar diferente do que o destinado até agora à nossa casa no Universo. Caso contrário corremos o risco, que é grande, de rodar pelas águas como a velha Nhola, o filho Quelemem, o neto doente e todos os gaúchos que não conseguiram escapar da calamidade.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

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