A Netflix está oferecendo aos seus assinantes um filme e uma série, ambos baseados em romance de Patrícia Highsmith, ficcionista norte-americana “fascinada pelo mórbido, cruel, anormal”, segundo suas próprias palavras pouco antes da morte, em 1995, aos 74 anos.
O filme, de 1999, obedece ao título original da obra literária, “O talentoso Ripley”, publicado em 1955. A série, de oito episódios curtos, manteve apenas o nome próprio, “Ripley”. São duas joias do cinema, indicadas para quem não se contenta com aparências, desconfia de respostas simples, sabe que mergulhar nas profundezas da psique é surpreender-se com o perverso, o torpe, o predatório, o selvagem que ainda dormitam dentro dos humanos e tantas vezes despertam. São obras imperdíveis e necessárias que evidenciam a arte do cinema como meio de reflexão e não apenas entretenimento.
A saga das produções referidas segue a da literatura, numa transposição admirável de linguagens. Mas a forma de mostrá-la torna mais densa a série, em detrimento do filme. O diretor Steven Zaillian (de “A lista de Schindler”) intensificou diálogos e expôs detalhes essenciais que no filme não têm espaço. Quanto ao elenco, tanto Andrew Scott na série, quanto Matt Damon no filme estão impecáveis. Seus desempenhos ficam em nossa memória. Grandes obras são atemporais, falam do que incomoda desde sempre. Como, por exemplo, o falso, o dúbio, o perverso. Adjetivos que descrevem a essência do protagonista, Tom Ripley.
Se o filme o mostra como trambiqueiro que vive de expedientes em Nova York, a série o coloca no baixo mundo da cidade. É exímio falsificador de documentos. Criador de golpes contra aposentados. Imitador de vozes e trejeitos. Hábil copiador de assinaturas. Enfim, um faz-tudo com habilidades que o tornam conhecido. Uma das frases que o definem já aparece num dos primeiros diálogos da série: “Ripley, você é um homem difícil de encontrar.” O desenvolvimento da trama mostrará ao espectador o significado real deste “difícil”. Que não é antônimo de fácil, mas de raro. Ele é capaz de fazer aquilo que a outros parece impossível. Como (quem sabe?) convencer um jovem e rico herdeiro a deixar a vida boa que leva na Itália e voltar para os EUA a fim de cuidar dos negócios do pai.
Descoberto e contratado pelo magnata Richard Greenleaf, dono de vários estaleiros, Ripley viaja à Itália onde, usando recursos de farsante, estabelece relações de amizade com Dickei, o bon vivant que queima o dinheiro do pai levando vida de prazeres na pequena Atrani. Ainda que a namorada de Dickei desconfie do forasteiro, a arte do homem para enganar e fingir é tamanha que ele logo se torna íntimo dos dois. O mundo de riqueza, beleza e arte onde Dickie tenta inutilmente se impor como pintor, seduz Ripley. Então começa de fato a história onde a poderosa fotografia em preto e branco torna-se metafórica ao remeter para aspectos de luz e sombra intrínsecos ao comportamento do protagonista.
Outro elemento expressivo no conjunto da obra são as várias referências a Caravaggio. Telas deste artista da Renascença aparecem em destaque nas lindas casas de Roma, San Remo, Nápoles e Palermo por onde o protagonista transita. É possível que Zillian tenha pretendido criar um paralelo entre Ripley e Caravaggio, artista que viveu entre 1571 e 1610 e é considerado o mestre do chiaroscuro, técnica que contrasta luz e sombra.
Mestre do século XVII europeu, Caravaggio quebrou os esquemas de ordem da Renascença, iniciando a cultura figurativa moderna, impregnada de novas e angustiantes exigências morais. Pintou Madalena em trajes ciganos, Maria descalça e o apóstolo Mateus como um rude homem do povo, o que provocou polêmica. Isso e as peripécias misteriosas que marcaram sua biografia fizeram dele um artista de excepcional talento que se tornou maldito em sua época. Passou os últimos anos entre cidades do sul da Itália, fugindo da polícia depois de matar um homem. Como Ripley.
Adendo ou reforço à fotografia em preto e branco, as telas de Caravaggio escolhidas para a série exaltam o claro-escuro como componente plástico e acentuam o clima dramático, a atmosfera desesperada, a recorrente inquietação que pontuam a saga. Isso pode levar o espectador mais atento a refletir sobre o caráter do protagonista, marcado pela dubiedade; e pode despertá-lo também para o jogo de luz e sombra comum a todos nós, humanos. Realidade e invenção, transparência e opacidade, superfície e profundidade são aspectos da pintura de Caravaggio, da personalidade de Ripley e de manifestações de humanos de todas as latitudes no seu dia a dia. A esse respeito o ator Andrew Scott assim se manifestou: “Todos temos a escuridão aqui dentro, o inexplicável. Somos um mistério para nós mesmos.”
Se nem todos se tornam criminosos como os talentosos Ripley e Caravaggio, todos, sem exceção, em muitos momentos da existência são tomados por sentimentos pouco civilizados. Entre luz e sombra caminhamos, e no meio-fio das nuances somos capazes de fingir, iludir, mentir, disfarçar, invejar, odiar, desconsiderar o outro e tratá-lo apenas como objeto que sirva a nossos interesses.
Mas há controvérsias a respeito disso, especialmente da parte de quem se considera santa ou santo.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras
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