Eu já lia, acompanhava jornais. Ia buscar o Diário de São Paulo, na Praça Barão da Franca, todas as tardes para meu pai, na banca perto da Casa Syria, ao lado da Agência Brasil. Era minha obrigação de filha mais velha. Morávamos a poucas quadras dali e o maior perigo era alguma chuva cair sem avisar. Esperava por ele naquele local, descíamos para casa, eu antecipava a abertura do jornal, em busca de novidades. Mal sabia ler, já era curiosa. Mamãe achava o cúmulo eu entregar o jornal, que era impresso e vinha de São Paulo, aberto e folhado. Meu pai se divertia. Infelizmente ele morreu antes de ler qualquer publicação assinada por mim nos jornais da cidade e sem imaginar que, num futuro distante, eu seria correspondente de grande jornal paulistano. Um dia, a novidade. Com a morte do rei, haveria coração da rainha da Inglaterra dentro de algum tempo. Mas demorou. A cerimônia passaria por muitos protocolos, teria que ser preparada, não era coisa simples assim como tirar a coroa do morto, botar na cabeça da moça. Teria que haver pompa e circunstância. Preparação e direção. Previsão de pormenores. Elaboração de detalhes. Acompanhei pelos jornais não apenas item por item, mas detalhes por detalhes. Nem sabia onde ficava a Inglaterra direito, mas imaginava a catedral de Westminster, o Big Ben tocando, a carruagem, a beleza das coroas nas cabeças reais. Muito tempo depois, visitaria todo aquele cenário. E nada foi surpresa para mim. Senti apenas ligeiro dejà-vu, muita emoção e frio na espinha de emoção.
Naquele tempo nada era imediato. Imagino que correram dois ou três anos para ser exibido na cidade o documentário da cerimônia da coroação da jovem rainha da Inglaterra. Ia ser exibido no Cine São Luiz, localizado na praça do Hotel Francano. Era comum aparecer nas praças centrais espécie de outdoors de lata, amarrados aos postes, onde se pintava com cal o nome dos filmes a serem exibidos e os horários das exibições do dia. Acho que traziam, igualmente, o nome dos artistas, em letras bem pequenas. Fiquei alucinada ao ler que naquela noite seria exibido o documentário da coroação que eu sonhava ver. Virei uma sarna. Minha mãe não poderia ir. Era meu pai quem deveria me levar. Pede daqui, insiste dali, lá fomos eu e papai, de mãos dadas, ver o filme. Acho que durante a exibição não pisquei. Nem falei. Deve ter sido um alívio – quem sabe algo preocupante, eu ficar calada e quietinha, talvez sonhando, com o que vi naquelas horas em que meu pensamento voou e atravessou pela primeira vez o oceano. Muito tempo depois conferi pessoalmente as cenas do documentário. Passei e passeei pelo Saint James Park, pelo palácio de Buckingham, conferi as escadas que circundam o memorial da rainha Victoria, as ruas largas. Vi de perto trajes icônicos, até a roupa e as joias que Elizabeth usou naquela cerimônia. Passo pelo palácio e, ainda hoje, sinto o gosto da surpresa de quando era menina.
Sim, minha paixão pela família real inglesa é antiga. Sim, começou com a rainha Victoria, passou por todos os 007 e chegou até Downton Abbey; deu paradinha em Jane Austen; escorregou no Colin Firth; se debruçou nos irmãos Fiennes; piscou para George Orweell; mandou beijos para Aldous Huxley; visitou Virginia Wolf; cantou Beatles, Rolling Stones e Amy Winehouse; andou pela Oxford e Regent Street, além de se deixar fascinar por Oscar Wilde... Não. Não gostou de Sherlock Holmes, mas adorou Henry Cavill e Bill Nighy.
Sábado, dia 6 de maio de 2023, vou me levantar cedinho, tomar café, escovar os dentes, nem vou tirar o pijama, ligarei a televisão e usufruirei do privilégio de acompanhar todos os momentos da coroação do rei Charles III. É a segunda cerimônia do gênero que eu vejo. Imagine só se eu vou perder. Mais uma vez, estarei vivendo e respirando história.
Viva longa ao Rei!
Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.
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Comentários
1 Comentários
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Luiz Gonzaga Ferreira 12/05/2023Maravilha de texto, parece que estou vendo a garotinha de olhos atentos ao filme da coroação da rainha Elizabeth, com umo era bom sonhar. Parabéns, Lúcia Helena