De repente, novo ciclo. Sem que você tenha escolhido ou pedido, ao menos pensado na possibilidade do ocorrido que, paradoxalmente é a única possibilidade presente e plausível na vida humana, eis que você se encontra no meio do pátio, com os ossos partidos, perdida diante das múltiplas estradas que se abrem diante de você e na mais profunda negritude e solidão. Solidão, tristeza, insônia, arrepios de frio, tremuras. Perdida. Você se sente perdida. Desamparada. Sem rumo. E sozinha. Não dá para dividir com ninguém os sentimentos que a assolam, pois que cheios de inesquecível e profunda cumplicidade resultado de pequenas (e intensas) situações vividas no cotidiano. Chora, abaixa a cabeça diante da dor. Quase se desespera. E se pergunta: cadê sua força? Cadê a força que sempre pareceu ser sua marca e característica? Cadê a antiga coragem para encarar e vencer o câncer da solidão? Há cirurgião que possa lhe arrancar a saudade do peito? Há macumba que elimine esta estranha, nova e profunda dor, quase física?
Aí pedem que você se mude de casa, como se você fosse caracol, ou tartaruga, que pode arrancar de si o casco abarrotado, abandoná-lo e levar seu interior adiante. Levar sua essência e ir em frente livre, leve, sem peso e sem olhar para trás. Argumentos: hoje você ocupa o mínimo do mínimo espaço que antes dividia com muitas pessoas. Avaliam que você armazenou em demasia – o que chamam de porcarias – pequenos, grandes e imensos objetos – dos quais muitos nem se lembra mais. Têm razão. Mas entre as pequenas coisas guardadas você encontra caixa abarrotada com bilhetes amorosos, doces, açucarados, até mal escritos alguns, que carregam peso descomunal do amor de seus autores: netos, filhos, amigos, ex-alunos, parentes, pessoas que você amou ou nem ama mais, que te amaram, todas ainda presentes na sua vida.
Você decide: “vou-me embora é pra Pasárgada”...
Não vai. Vai para local menor e, afirmam, mais aconchegante e prático, muito menos trabalhoso. Você anda pela casa, sozinha, escolhendo mentalmente, selecionando objetos, lembrando de como adquiriu isso ou aquilo. O tempo urge. Com caderno e caneta, alguém te segue, secretariando. Você sai do compartimento mais distante da agora considerada porta de saída da casa, que antes era entrada. Percorre os compartimentos um após outro. Devagar. Pergunta-se: “Isso vai?”. Você quer optar, decidir, escolher pelo grau da intensidade da lembrança. Não lhe dão tempo de pensar. Imediatamente lhe perguntam: “Isso vai?” Diante da resposta afirmativa ou negativa escrevem “Vai” ou “Não Vai” num papel que é colado ao móvel. Objetos carregados de lembrança que você levou anos para juntar são postos sobre mesas e aparadores porque deverão ser, mais tarde, passados por peneira fina: você só pode levar o que for significativamente mais intenso. E chega a hora da triagem. Se antes foi seleção, agora é opção.
A boneca de pano que foi de sua mãe, feita pela tia-avó ou a boneca de porcelana de sua filha que se casou, mas não se mudou totalmente e deixou baús de trecos para trás? A caixa de fotos antigas, bota antigo nisso, que sua avó usava como artifício para acalmar você, contando-lhe histórias de gente que você nunca chegou a conhecer ou a caixa com figurinhas das Guerra nas Estrelas dos seus filhos, quando eram pequenos? O enxoval de bebê, de cambraia e bordados ou seus vestidos de baile? Tá difícil.
Bota difícil nisso, esse embate entre a razão e a emoção...
Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.
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