A questão dos carroceiros

Engana-se quem acha que a “causa animal” é um assunto de menor importância, desnecessário ou desperdício de dinheiro público. Os animais são parte da cidade e do dia-a-dia da população e é dever dos nossos legisladores e administradores públicos garantir uma relação harmoniosa e respeitosa entre nós e o nosso meio ambiente.

Por Guilherme Cortez | 18/04/2021 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Eleita com a maior votação entre seus pares, a vereadora Lindsay Cardoso foi uma das grandes surpresas das eleições do ano passado em Franca. Concorrendo pela primeira vez e com uma campanha modesta, chegou à Câmara como uma das novidades da atual legislatura, completando o time de duas mulheres no meio de 13 homens com a vereadora Lurdinha Granzotte (que em 4 meses de mandato já carrega 3 representações no Conselho de Ética pela sua participação em manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Congresso Nacional e uma intervenção militar inconstitucional).

Lindsay tem uma louvável trajetória como defensora dos animais, em especial de cachorros abandonados e em situação de maus-tratos, pauta que trouxe para dentro do Legislativo municipal. Mas, desde que chegou na Câmara, dois projetos de sua autoria geraram polêmica. O primeiro, apresentado em conjunto com o vereador Ilton Ferreira, proibia a atividade das carroças com tração animal em Franca no prazo de 5 anos. O segundo, mais recente, determina a castração e chipagem de animais na cidade. Ambos os projetos foram adiados para discussão em sessões futuras da Câmara por conta da repercussão.

O adiamento dessas discussões é importante para que o conjunto da cidade possa se debruçar, opinar e ser escutado sobre temas tão sensíveis. Engana-se quem acha que a “causa animal” é um assunto de menor importância, desnecessário ou desperdício de dinheiro público. Os animais são parte da cidade e do dia-a-dia da população e é dever dos nossos legisladores e administradores públicos garantir uma relação harmoniosa e respeitosa entre nós e o nosso meio ambiente.

O tema das carroças movidas por tração animal é o mais delicado. Existem muitas pessoas que trabalham com carroças em Franca. Em geral, os carroceiros vivem em situação de grande vulnerabilidade e conquistam seu sustento através da venda de materiais “catados” nas ruas para reciclagem, carretos ou do trabalho rural, cumprindo um papel importante de limpeza pública. Não raro, vivem em situação de rua. Alguns, inclusive, arrastam suas próprias carroças e outros utilizam da tração de cavalos, mulas jegues ou jumentos.

As pessoas contrárias à utilização de cavalos para tração de carroças argumentam que essa prática gera maus-tratos para os animais. Em muitos casos, sim, o peso das carroças e as distâncias percorridas acarretam sofrimento para os cavalos, além de receberem agressões. Aliás, não só as carroças, como também a cavalaria da polícia e outras atividades que não se cogita proibir. Há ainda quem compare a situação dos animais à escravidão – um desrespeito enorme em um país que ainda sente as sequelas da brutal escravização do povo negro durante mais de 300 anos e que até hoje vê corpos “desumanizados”, como as 22 pessoas encontradas em situação de trabalho análogo a escravidão em uma fazenda de cana-de-açúcar em Ituverava na última semana.

Ao mesmo tempo, sem um suporte necessário para os carroceiros, a proibição da tração animal vai ser substituída pela tração humana e esse mesmo sofrimento vai ser estendido para pessoas em situação vulnerável que precisam recorrer a essa atividade. Nesse momento de pandemia, em que tantas famílias estão ameaçadas pelo desemprego e pela fome, imagine centenas de pais, mães e crianças arrastando carroças cidade afora para conseguirem se alimentar. Além de tirar a forma de sustento das pessoas que já trabalham com as carroças e vivem em condições difíceis.

O projeto original, de duas páginas, não oferece garantias para os carroceiros, apenas menciona a “transposição, através de políticas públicas e projetos municipais, dos condutores de veículos de tração animal para outros mercados de trabalho” e prevê o pagamento de multa para quem descumprir. Quais políticas públicas e projetos municipais serão oferecidos? E como ficarão os carroceiros que não queiram ser “transpostos” para “outros mercados de trabalho”? O tema das carroças é muito mais complexo para ser solucionado com duas páginas e alguns artigos.

Franca precisa ser uma cidade que respeite, acolha e cuide dos animais. Há várias alternativas para mudar a realidade das carroças sem prejudicar as pessoas que dependem dessas práticas, começando por um trabalho de conscientização e suporte por parte da Prefeitura para o cuidado com os cavalos, investimento nos equipamentos públicos de proteção aos animais, e passando pelo oferecimento de condições para os carroceiros substituírem a tração animal por equipamentos motorizados que não estendam o sofrimento para as costas humanas.

Uma cidade ambientalmente equilibrada pressupõe que seres humanos e animais não humanos convivam em harmonia e que nem uns nem outros sejam enxergados como mercadorias ou objetos de exploração. A mesma solidariedade com os animais é a que temos que ter com as pessoas em situação de vulnerabilidade, e vice-versa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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