Encontros (im) possíveis


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 “Meu fim será meu começo”. Esta frase de Mary Stuart (1542-1587) nunca foi dita por ela à prima e responsável por sua execução, Elizabeth l (1533-1603). Integra a carta-testamento escrita na véspera de sua morte. Próximas fisicamente, as duas rainhas  aparentadas que disputaram o trono da Inglaterra nunca se encontraram, embora tenham mantido correspondência e trocado retratos. A história das extraordinárias soberanas  já foi contada em prosa, verso, drama e imagens por diferentes autores que  por vezes  usaram  licença  poética para preencher lacunas que instigaram aqueles a quem a saga peculiar da dinastia Tudor tocou. Um dos que investiram no tema foi o alemão Schiller (1759-1805). Sua Mary Stuart,  traduzida por Manuel Bandeira para o português, e levada  aos palcos do mundo, promove o encontro jamais acontecido. Na peça repleta de sexo, poder, ambição, intriga política e rivalidade, a rainha católica da Escócia e a rainha protestante da Inglaterra se digladiam em diálogos que revelam a cada fala personalidades opostas e ambições semelhantes. A frase profética que abre este texto faz parte do duelo verbal que nunca ocorreu na realidade.

Fruto do esplendor da “Era do Ouro”, um dos apostos indiciadores do reinado de Elizabeth, Shakespeare (1564-1616) é o maior  nome da literatura a usufruir  do contexto benéfico à dramaturgia na Inglaterra de seu tempo. Seu legado de 38 peças, 154 sonetos, dois  poemas narrativos e uma dezena de avulsos contrasta com o irrisório número de registros sobre sua vida privada. Até mesmo a aparência física se esfuma em especulações, pairando dúvidas sobre a  tela de John Taylor que o retrataria. Mas, independente de biografia, contando apenas com a imensa  capacidade de mobilizar sentimentos com palavras, a obra de Shakespeare pulsa  vívida  a cada montagem de Hamlet, Romeu e Julieta, Rei Lear, O mercador de Veneza, Júlio César, Sonhos de uma noite de verão... Respeitada já em sua época, o valor cresceu  com os românticos que reconheceram a genialidade autoral;  a fama se amplificou com os modernos que lhe descobriram novas camadas de sentido; e o conjunto continua reverberando beleza e verdade em nosso século, onde fulgura com a atemporalidade dos clássicos.  
 
No mesmo momento histórico, na Espanha que vivia igualmente  seu “Siglo de Oro”, surge outro gênio, Miguel de Cervantes (1547-1616), aquele que a posteridade reconheceu como o criador do romance, novo gênero que passaria a deleitar um público cada vez mais numeroso. De Cervantes  temos biografia  pouco menos anêmica que a de Shakespeare. Sabemos que nasceu em Alcalá de Henares, estudou até os dezesseis anos, mas por falta de recursos não conseguiu frequentar  universidade. Tornou-se soldado, lutou contra muçulmanos, foi ferido na Batalha de Lepanto (1571). Depois caiu prisioneiro  em Argel  onde, segundo um biógrafo, “durante  cinco anos conheceu o pior da condição humana, aprendeu um pouco de árabe e fez amigos eternos”. Enfim livre, escreveu algumas peças e sonetos que lhe garantiram sobrevivência e alguns recursos.  A estabilidade durou pouco: quando em 1588 os navios de Elizabeth l derrotaram a “Invencível Armada” de Felipe ll, o banco onde Cervantes havia guardado suas economias faliu e ele ficou com dívida enorme. Incapaz de saldá-la, foi parar de novo na prisão, desta vez em  Sevilha. Foi ali que  começou a escrever  Dom Quixote, considerado pelo Instituto Nobel, quatro séculos  depois, “ o melhor livro da história da humanidade”. No prólogo Cervantes registra que a obra, cuja primeira edição é de 1605, “foi gerada em um cárcere onde todo incômodo tem seu assento, e onde todo triste ruído faz sua habitação". 
 
Inspirado na grandeza desses dois contemporâneos, mortos no mesmo ano, 1616, e  mês, abril, talvez no mesmo dia, 23, o  escritor britânico Anthony Burguess  (1917- 1993) escreveu um conto intitulado Encontro em Valladollid, que oferece ao leitor um panorama do que seria uma conversa entre  os dois espetaculares construtores de mundos mágicos. Na cidade espanhola, onde Miguel de Cervantes viveu realmente  por algum tempo, chega  um dia William Shakespeare, direto de Londres,  para cuidar de negócios ligados ao seu teatro. Ao se encontrarem, os (futuros) totens das culturas hispânica e inglesa  trocam ideias sobre o trabalho da escrita e a relação com o público. É pura ficção, pois não há indício de que Cervantes tenha sequer  lido Shakespeare e apenas um breve sinal de que este conheceu alguma coisa daquele. Mas a beleza da criação literária reside nessa total liberdade do escritor, no caso Burguess,  até para  promover encontros impossíveis na linha histórica mas plausíveis nas áreas da imaginação. Na verdade, o que o narrador nos segreda nas entrelinhas  é que a coincidência mais importante a aproximar o bardo inglês do novelista espanhol  não se encontra em datas, mas nos estilos, conteúdos e  criação de personagens como Hamlet e Quixote,  que sedimentaram as bases do ícone. Tendo vivido numa mesma época e no mesmo espaço  europeu, Shakespeare e Cervantes sofreram  influências culturais parecidas, fizeram leituras semelhantes do mundo e acabaram  encontrando soluções literárias próximas. 
 
Vivemos a Era da Modernidade Líquida, expressão do sociólogo Zygmunt Bauman. As leis do efêmero, do volátil, do superficial, do etéreo pretendem nos governar na sociedade de consumo. Entretanto, milagre da literatura, os legados de Cervantes e Shakespeare mostram-se cada vez mais sólidos, não se desmancharam no ar decorridos  quatro séculos. Isso porque esses ficcionistas  souberam transformar cada sonho pessoal  em relato universal, e entenderam  como poucos o mais profundo da alma. Conferiram valor à liberdade, à amizade, à justiça; questionaram o poder; discutiram a loucura; desvelaram o lado mais obscuro de nossa humana condição. Fizeram tudo isso  usando linguagem acessível a todos e compondo personagens imortais .
 
Vamos celebrar  na  segunda-feira, o Dia Mundial de Sua Excelência, o Livro. Em todo  23 de abril, quem compra um livro na Catalunha ganha uma rosa (- ah, a cultura...). Ainda que tenha sido  fixada  em 1995 pela Unesco  em  data sobre a qual  há divergências, ou seja, a da morte dos dois  gênios da literatura, a efeméride  alcança celebrar o instrumento que une  os dois  escritores e estes  aos  seus  leitores- o Livro. 
 
Em tempo.  Com o Livro o encontro do Leitor com o Escritor que escolhe ler é sempre possível e fértil.  Algumas vezes também terapêutico pelo que desvelam os textos, de forma homeopática ou epifânica.  De toda forma representa  acréscimo, pois é inquestionável que saímos um pouco modificados depois de  uma leitura que tanto nos envolve como mobiliza nossa alma. 

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