Assim como um filme é sequência de imagens reunidas em determinada ordem para contar uma história, a vida é o resultado de uma sucessão de instantes que constroem biografias únicas. No primeiro caso, o arbítrio do diretor condiciona o tempo da narrativa; no segundo, é um conjunto de circunstâncias aleatórias que impõe a sua marca na existência de cada pessoa. Em ambos os casos, o tempo é o senhor da ordem em que filmes e seres são construídos.
Para quem busca na tela fortes emoções e defende o entretenimento como valor único e inegociável, o filme Boyhood, do diretor Richard Linklater, poderá parecer arrastado, opaco, melancólico. Para quem vê o cinema como expressão de arte, e no caso arte realista, a história se imporá pela originalidade, reflexão e sensibilidade. Sua temperatura, se pudesse ser medida, não seria morna, como a adjetivam os do primeiro grupo, mas sóbria, como a avaliam os do segundo. E o sóbrio pode ser impactante, ao recusar a idealização e fixar a realidade- sem maquiagem, sem filtros, tecida de matéria comum, onde o extraordinário, como a própria palavra revela, poucas vezes se faz presente.
A maioria das vidas irrompe, floresce, frutifica e fenece sob o signo do ordinário. É essa trivialidade que o diretor captura ao contar a jornada de uma família e sua relação com o tempo. É o caráter fluido dos seres humanos que ele persegue na história que se fosse obra literária se vincularia ao gênero do roman-fleuve, com a vida jorrando incontida a cada segundo; e nunca ao do folhetim, com suas hipóteses, clímax e situações inverossímeis.
Os 165 minutos de duração de Boyhood só parecerão longos aos que necessitam de suspense para se prenderem à trama. Àqueles que se atêm a diálogos inteligentes, imagens naturalistas e alguma transcendência, os doze anos sobre a vida de uma família se reduzirão a um triz. As transições foram bem conduzidas, e inseridas dentro de um roteiro inteligente onde o enredo colabora em tudo para mostrar lados claros e obscuros de seres humanos, muito humanos. Procedendo de forma autoral ao contar a história do crescimento físico, intelectual e emocional de Manson, o diretor faz uso discreto de elipses e saltos, de forma a imprimir com rigor estético nos rostos a marca do tempo, o herói intangível desta obra que pode permanecer com mais força que o ganhador do Oscar 2015, Birdman.
Doze anos foi quanto Linklater levou para rodar o filme, cuja originalidade começa por ser projeto único do ponto de vista cinematográfico: ele acompanhou em tempo real a vida de Ellar Coltrane (o protagonista Mason), dos seis aos dezoito anos, o que, por si só, já representou gigantesco desafio. Havia o risco de, a qualquer momento, o garoto desistir da participação. Por outo lado, atores como Patrícia Arquete se dispuseram a envelhecer diante das câmeras, atitude que pediu coragem num meio onde a ditadura da eterna juventude dita as regras.
Filho de um casal que se separa, Manson é obrigado a lidar com a ausência do pai (Ethan Hawke), o comportamento excêntrico dos namorados da mãe, as implicâncias da irmã Samantha (Lorelei Linklater), a mudança de cidades, o bullying nas escolas, a necessidade de se firmar diante de colegas, as manifestações da sexualidade, as pequenas gratificações, o reconhecimento. Também com as raivas, tristezas, frustrações e todo o vasto leque de sentimentos que se nos humanizam, são fonte de sofrimentos. Manson é um menino como outro qualquer, vivendo com sua família comum situações bem prosaicas. A força do filme reside na forma como se desvela a beleza do corriqueiro.
Seguindo o protagonista, a trilha sonora desperta saudade da primeira década deste nosso século XXI, com Coldplay, Foo Fighters, Wilco, Lady Gaga, Daft Punk, Pharrell Williams e outros. A cultura pop emerge em muitas manifestações, das eleições presidenciais americanas aos lançamentos dos livros de Harry Potter. O universo da Internet e dos celulares já mostra junto ao seu poder de sedução a gênese das primeiras reflexões críticas sobre o uso abusivo e substitutivo deles nas relações sociais.
Mais do que um filme, Boyhood é uma experiência singular. Não só para o cineasta, a equipe de filmagem, o elenco. Também para quem o assiste e se identifica, por exemplo, com a mãe da história, em cena que contribuiu para dar a Patrícia Arquete o Oscar de Melhor Atriz coadjuvante neste 2015. Ao ver os filhos entrando na faculdade, ela se dá conta de como o tempo passa rápido, de como grande parte da vida escoa sem que se aperceba, de como tudo é breve, mesmo quando intenso.
Com esta cena depressiva, das últimas do filme, Linklater parece sugerir que se o presente resgata o conceito de tempo como longa jornada para a morte, também é certo que o balanço dos doze anos da família de Manson convida a um carpe diem. Sem hedonismos, mas com abertura para as miúdas alegrias do cotidiano.
VERSÁTIL
Richard Linklater nasceu em Houston, no Texas, em 1960 e se tornou o cineasta que melhor incarna o espírito do cinema independente dos grandes estúdios norte-americanos. Sua formação remete a estudos de literatura e teatro ainda no ensino médio. Depois de cursar a universidade de Houston, muda-se para Austin, onde funda, em meados dos anos 80, uma escola de cinema destinada aos cinéfilos da região. Ali ele começa a fazer curtas e desenvolver jogos.
Em 1991 realiza o primeiro longa, Slacker, que poderia ser definido como um olhar sobre a juventude texana naquele momento. A mesma temática o levará a produzir dois anos depois Jovens, loucos e rebeldes, onde se aprofunda mais nas relações humanas.Com a comédia romântica Antes do Amanhecer (1995), obtém muito sucesso e se torna conhecido também fora dos EUA.
Muda de chave e faz um western, Newton Boys- Irmãos fora da lei, em 1998, sem muita repercussão. Filma Waking Life, mistura de desenho, pintura e fotografia. Volta ao clássico em Escola de rock. Parte para a sequência de Antes do amanhecer com Antes do pôr-do-sol.
Em 2006 o cineasta foca de novo nos efeitos visuais e filma com Keanu Reeves e Winona Ryder uma história meio real, meio virtual. No mesmo ano faz uma comédia, Fast food, uma rede de corrupção, selecionado para o Festival de Cannes.
Orson Welles e eu, terminado em 2009, é levado ao Festival de Deauville. Por conta do sucesso dos primeiros Antes..., filma o terceiro, Antes da meia-noite, e dá por terminada a trilogia.
Em 2013 ele revela em entrevista seu projeto em andamento de filmagem com Ellar Coltrane. Expõe seu desejo de apreender o tempo contando a história de um garoto dos seis aos dezoito anos, no seio de sua família, interpretada por Patrícia Arquette, Ethan Hawke e Lorelei Linklater. Falava do filme Boyhood, que teve quatro indicações ao Oscar. (SM)
FILME
Título: Boyhood - Da Infância à Juventude
Duração: 2h45min
Direção: Richard Linklater
Atores: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke mais
Gênero: Drama
Sonia Machiavelli, professora, jornalista, escritora
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